Nope é o filme mais recente de Jordan Peele, um western contemporâneo com outros géneros à mistura, como o sci-fi, a comédia e o thriller. Depois de Get Out e Us, filmes de terror que sedimentaram a sua posição como hábil contador de histórias sobre a contemporaneidade, Peele vai beber, no seu mais recente filme, aos épicos de Spielberg — o que lhe concede imediatamente um caráter de clássico —, com um trio de personagens centrais a lutarem contra uma força abismal, vinda do céu, para os aterrorizar. Mas Nope é sobretudo um filme sobre cinema. Cinema no seu sentido mais prático; não propriamente sobre cinefilia, mas sobre a captura de imagens e o papel destas em consolidar alguém na história. A introdução do filme após o genérico é feita através de uma sequência de fotografias em movimento feita por Eadweard Muybridge, representando um jockey1 negro. É uma sequência familiar a muitos, mas se de entre sujeito e fotógrafo algum nome surgir associado a estas imagens, será o de Muybridge (na realidade o nome do jockey é desconhecido), levantando a questão do sujeito invisível, aquele que serve como objeto.
Os protagonistas de Nope são os irmãos OJ e Emerald Haywood, descendentes de Alistair E. Haywood, o jockey representado nessa mesma sequência. Mantêm um rancho no vale de Agua Dulce na Califórnia, que lhes é deixado após a morte do seu pai sob circunstâncias sinistras. A força motriz da narrativa prende-se na vontade dos irmãos de salvar o rancho, já passado dos seus dias de glória, e apoia-se inicialmente no imaginário coletivo dos UFOs, alimentado pela cultura das teorias da conspiração. A promoção de Nope, que verifico numa pesquisa rápida ter começado com uma partilha de Jordan Peele de um cartaz no Twitter em Julho de 2021, apostou fortemente no mistério como estratégia de marketing. O cartaz revelava uma nuvem estranhamente geométrica a levar a rasto uma fita de bandeirinhas. Os trailers mostravam pouco, sobretudo as reações das personagens a algo passado lá em cima. O filme cumpriu: temos um alien. E algo que faz bem feito é inserir num género cinematográfico já tão explorado uma nova acepção de alien – para lá da linguística de Arrival e da sangria de Alien.
Nope estrutura-se em cinco capítulos: Ghost, Clover, Gordy, Lucky e Jean Jacket; nomes de cavalos ou, mais apropriadamente, animais, que marcam o rancho Haywood e que, em função dos seus instintos, desbloqueiam momentos pivotais no filme. O alien, a quem é dado o nome de Jean Jacket em referência a um cavalo, é invocado inicialmente por Jupe, vizinho do rancho Haywood, que pretende construir um espetáculo no qual o mostra ao público (e durante o qual fotos não são permitidas).
Jupe é o dono do parque de diversões “Jupiter’s Claim” e um ex-ator que atingiu a fama em criança e vive agora da nostalgia gerada a partir dos seus primeiros filmes. Vendendo até visitas a salas secretas com memorabília, é o agente da comodificação do seu próprio trauma – a narrativa paralela de Nope, em flashback, é a de um massacre sangrento no set de Gordy’s Home, sitcom em que Jupe participava, na qual um chimpanzé matou e mutilou vários atores, sendo ele o único sobrevivente. Momentos antes de provocar Jean Jacket para o seu mais recente espetáculo, murmura para si mesmo: “És escolhido”, evocando simultaneamente o mito do excepcionalismo e do oeste americano.
O seu rancho é uma espécie de sucessor dos espetáculos do Wild Wild West, encabeçados pela figura de Buffalo Bill e outros da mesma laia, exposições nómadas que passavam pelas grandes arenas dos Estados Unidos a partir de 1883, explorando temáticas de cowboys e “índios” no oeste, mitificando as suas vidas. O oeste americano é elástico o suficiente para que nele se gerem as mitologias que alimentaram e continuam a alimentar Hollywood.
Foi também nestes espetáculos que se construiu a fundação dos westerns no cinema. É apropriado que em Nope, na sua forma contemporânea, de hoodies e t-shirts gráficas, se retorne à figura do cowboy negro, tendo em conta que esta figura nasceu com cavaleiros e vaqueros negros e indígenas, passando, na representação cinematográfica, pelo processo de apagamento e substituição pelo seu contraparte branco, que até hoje nos agracia os ecrãs.
Em The Animal That Therefore I Am (More to Follow)2, Jacques Derrida comenta sobre Nietzsche: “Nietzsche também disse, logo no início do segundo tratado de A Genealogia da Moral, que o homem é um animal prometedor, com o qual quis dizer, sublinhando essas palavras, um animal que é permitido fazer promessas (das versprechen darf). Da Natureza diz-se que se encarregou de criar, educar, domesticar e “disciplinar” (heranziichten) este animal que promete.”
Também sobre a Natureza e sobre a Humanidade fala Nope, e a grande descoberta do filme é a seguinte: Jean Jacket é um animal, comporta-se segundo instintos e, assim, OJ apercebe-se de que pode ser amansado. Jean Jacket não persegue ninguém deliberadamente, nem tem sede de sangue; faz o que faz apenas porque tem fome. Quem morre ao ser engolido pela criatura é por uma de duas razões: ou porque o perseguiu com a pretensa de o encurralar, ou como consequência do processo desta se alimentar. Nesse sentido, Jean Jacket não difere demasiado em comportamento dos cavalos que OJ treina; não procura o domínio da terra, é apenas um animal perdido que procura segurança no Vale de Agua Dulce (com a diferença de ser um disco que se metamorfoseia em chapéu de cowboy, anémona e vestido de Iris Van Herpen).
O princípio do respeito pelo território e pelos animais é essencial em Nope. Jupe constrói uma relação com o alien que se baseia em posse e controlo, em contrapartida, OJ observa-o de longe, tratando-o com devida distância; afinal de contas o portentoso animal não deve ser olhado nos olhos. O olhar denota iniciativa, confronto.
OJ é discreto e tímido. O seu desconforto é visível numa cena em que acompanha um cavalo a um lotado set de filmagens e são imediatamente cercados pela equipa técnica, seguindo ordens de alguém acima, que por sua vez segue ordens de alguém acima, numa hierarquia confusa de uma máquina oleada que mastiga e cospe entretenimento. OJ não se impõe aos outros no meio do ruído, tenta recolher-se e assegurar a segurança do cavalo. Quando pede uma reunião de segurança, e lha concedem, fala-lhes com os olhos fixos no chão, consciente de ser observado por todos. Ele sabe da potência do olhar, treina-o todos os dias e compreende a dinâmica de poder nele contido.
Antlers, o cinematógrafo-estrela no set, que mais tarde descobrimos ser obcecado com a procura da derradeira imagem, assiste vários clipes concomitantes de predadores a devorarem presas em loop. Para ele, o olhar é uma ferramenta de procura de verdade, no entanto, Antlers ocupa a posição do ingénuo, aquele que fixa nos olhos do outro partindo de uma aparente superioridade.
Passados agora alguns meses depois da estreia de Nope nos Estados Unidos (em Julho), o filme tem sido criticado pela sua falta de impacto e de metáfora quando comparado com Get Out ou Us. O youtuber Logan Paul, um “criador de conteúdo” que construiu a sua fanbase a explorar o sofrimento e desconforto de outros, escreveu uma crítica a Nope em vários tweets dissecando e enunciando o que faz este filme ser este filme, numa espécie de epic own culminando com “Adoro Peele, os efeitos especiais e a estética. Mas a minha tese é esta: consigo senti-lo a tentar recriar o choque de Get Out e Us. O mistério, o fascínio violento e as escolhas cinemáticas feitas em prol de reação em vez de legítima contribuição para a narrativa mataram este filme para mim.” É elucidativo que Logan Paul saia tão ao lado na interpretação de um filme que trata os mesmos temas nos quais a sua carreira se construiu.
A crítica deste filme baseada na estranheza da narrativa dentro da obra de Peele talvez resida na expectativa contemporânea de padronização e regularidade temática na obra de realizadores de cinema, isto porque Nope é um filme diametralmente diferente dos seus antecessores, menos metafórico, mais what you see is what you get. Peele tem vindo a catalogar o trauma geracional e racial e a sua interseção com classes sociais, registando imagens de sofrimento negro, mas em Nope as imagens que nos são servidas são de espetáculo, deslumbre e procura da fama.
Manthia Diawara, em Black British Cinema: Spectatorship and Identity Formation in Territories fala sobre rupturas, referindo-se ao momento em que o espectador resiste à “completa identificação com o discurso do filme”, em que o espectador negro, vendo representações degradantes de personagens negras no ecrã, produz um discurso crítico sobre essas mesmas imagens, recusando identificar-se com elas, distanciando-se do sujeito da representação. Pode ser interessante ensaiar uma versão espelhada, em que uma audiência de massas branca, que encontra nos primeiros filmes de Jordan Peele imagens de sofrimento negro, faz uma identificação do outro com estas temáticas, vendo no ecrã o espelho de uma sociedade racista e as suas agressivas imposições sobre pessoas não-brancas. A ruptura aqui acontece quando o ecrã nos mostra uma representação diferente – de histórias outrora reservadas para atores brancos – de aventura, sci-fi, épicas – centrando-se agora em personagens negras que operam fora das temáticas que lhes eram reservadas.
Uma imagem literalmente agressiva, de violência contra corpos negros, tem mais valor de choque, traduzindo-se mais imediatamente em impacto — talvez o impacto que Logan Paul precisasse para sentir que este filme estava à altura dos seus antecessores.
No início do filme, OJ pergunta a Emerald: “O que é um mau milagre?”, e essa ideia, a de uma tragédia com potencial capitalizável, orienta toda a narrativa principal, bem como a narrativa secundária em flashback de Jupe.
Nope comenta sobre o valor (capital) do deslumbre e da violência e é um filme épico que retrata e critica a indústria do espetáculo, sendo ao mesmo tempo feito com recurso à tecnologia mais avançada que a indústria do espetáculo permite. Há algo curioso na crítica do excesso de mediação na contemporaneidade feita no formato de um filme de grande orçamento na maior indústria de entretenimento do ocidente.
Jordan Peele está a ser bem sucedido na sua passagem por Hollywood, mas, naturalmente, os seus filmes alimentam a máquina de Hollywood. E podemos até argumentar que não era o seu interesse não alimentar Hollywood, apenas garantir o seu lugar na mesa; mas, nesse caso, qual é a razão de ser da crítica neste filme? Ser apenas veículo para mostrar que Hollywood tem o seu dedo no pulso da sociedade? Podemos convocar aqui Audre Lorde, que nos diz que “as ferramentas do mestre nunca irão desmantelar a casa do mestre.”, E, peremptoriamente, “[as ferramentas] podem permitir-nos que temporariamente o vençamos no seu próprio jogo, mas nunca nos possibilitarão causarmos mudança genuína”.
Na sua crítica, Nope é bem sucedido, mas na sua execução perpetua exatamente aquilo a que se propõe criticar. Tudo isto não invalida o seu papel como um marco no cinema de massas, aquele que agora incorpora o olhar opositivo que bell hooks convoca. No entanto, a instrumentalização levada a cabo por Hollywood de vozes outrora ignoradas deve ser recebida com um olhar crítico, que nem a instrumentalização de qualquer comunidade minoritária ou movimento social pelo capitalismo.
1- Jockey, neste contexto, é alguém que monta um cavalo em corridas profissionais. Na década de 1880, e para quem estivesse no topo da sua carreira, era uma das profissões atléticas mais bem pagas – e mais perigosas – dos Estados Unidos da América. Neste período, grande parte dos jockeys no ativo eram negros, o que era pouco ususal em qualquer profissão, muito menos numa que tivesse salários altos. No entanto, a partir de 1900, a população de jockeys negros começou a diminuir consideravelmente, até ser uma minoria em extinção. 2- Jacques Derrida e David Wills. “The Animal That Therefore I Am (More to Follow).” Critical Inquiry 28, nº 2 (2002): 369–418. Nota: Todas as traduções foram feitas pela autora.
(Shifter)