Como a inteligência artificial generativa está a ajudar os estúdios e developers a criar videojogos

By | 12/10/2023

As ferramentas de inteligência artificial já são essenciais para a indústria do gaming, em diferentes áreas, dos testes de qualidade dos produtos, a popular os cenários com personagens virtuais ou mesmo, nos processos de atualização de clássicos (remaster) para correrem nas plataformas atuais.

A inteligência artificial generativa tem vindo a ser introduzida em diversas áreas e indústrias, automatizando e acelerando processos, otimizando os trabalhos mais repetitivos, e claro, ajudando a reduzir custos. A indústria do gaming não é “imune” às vantagens que a IA oferece no desenvolvimento de videojogos. Sobretudo nos chamados AAA, títulos de grandes orçamentos, que envolvem centenas de developers, demoram anos a produzir e têm orçamentos astronómicos: jogos como The Last of Us Part II e Horizon Forbidden West custaram à Sony mais de 200 milhões de dólares, cada um, a produzir (soube-se durante a exposição de documentos internos durante as audiências em tribunal do caso Microsoft/Activision Blizzard).

Como a inteligência artificial generativa está a ajudar os estúdios e developers a criar videojogos

Mas apesar das vantagens da IA, também há o lado mais pessimista, o receio dos estúdios serem ultrapassados por concorrentes mais inovadores, sobretudo por empresas de menor dimensão pela ajuda que a IA pode oferecer na concretização de ideias. Para Jia Xiaodong, CEO da Gala Technology Holding, “o impacto que a IA teve na indústria dos videojogos nos últimos quatro meses, é tão dramática quanto as mudanças que impactaram o mercado nos últimos trinta, quarenta anos”.

O uso da IA para acelerar processos no desenvolvimento

Vão chegar certos títulos ao mercado que se não fosse o envolvimento de IA provavelmente não veriam a luz do dia, pelo seu elevado custo de produção nos moldes tradicionais. Recentemente a Revolution Studios, estúdio britânico liderado por Charles Cecil, anunciou o regresso da sua conhecida série de aventuras “point and click” Broken Sword. Há um novo título na série, mas também uma versão remaster do primeiro capítulo, The Shadow of the Templars, lançado originalmente no PC e PlayStation em 1996.

Para trazer o “velho” jogo para a atualidade, transformar as animações visuais de baixa resolução da época para as novas dimensões requer a transformação de 30 mil frames de sprites animadas à mão. Em entrevista ao The Verge, Charles Cecil disse que cada frame demoraria uma hora a desenhar. E 30 mil horas de trabalho, a cerca de 15-20 libras à hora, é um valor astronómico a pagar para um estúdio de pequenas dimensões como a Revolution. Para resolver, o estúdio tentou utilizar IA no processo. O upscaling direto dos cenários originais através de IA não funcionaram nos primeiros testes.

Veja o trailer do remake de Broken Sword:

Relativamente aos sprites, o estúdio produziu algumas centenas à mão e entregou-os a investigadores da Universidade de York para treinar o modelo GAN (Generative Adversarial Network). Ainda assim, o resultado não foi satisfatório. Mas um engenheiro da Nvidia deu uma dica de como a IA poderia interpolar frames entre as desenhadas à mão com as prompts geradas por inteligência artificial. O resultado permitiu diminuir o trabalho de uma hora, quando desenhadas à mão, para cinco a 10 minutos cada. Isto porque os rostos e mãos das personagens ainda requerem um tratamento manual por parte dos animadores.

Popular mundos e garantir a qualidade dos videojogos com IA

O exemplo da Revolution Studios é apenas um de como a IA pode acelerar as tarefas que demorariam horas e seriam dispendiosas de executar num pequeno estúdio.

Em entrevista ao SAPO TEK, João Orvalho, CTO da Didimo, destaca que certas tarefas repetitivas se tornam particularmente maçadoras e demoradas para o colaborador. “A inteligência artificial vem solucionar este problema ao automatizar determinadas tarefas e otimizar o output final”. Quando se aplica essa lógica ao sector dos videojogos, refere que existem algumas tarefas que podem ser automatizadas através de IA. E dá como exemplo o próprio trabalho da Didimo, a criação de personagens para videojogos.

“Quando olhamos para um mundo de um videojogo, sobre o qual será construído uma narrativa, inevitavelmente vamos deparar-nos com a criação de personagens, humanas ou criaturas fantásticas”, refere João Orvalho. A criação dessas personagens únicas, diversas e com uma estética cuidada pode demorar semanas ou meses. É aqui que entra o trabalho da Didimo em utilizar IA generativa para gerar centenas de personagens em minutos através de prompts.

Veja como a Didimo cria várias personagens rapidamente com a ferramenta Popul8:

O sistema funciona de forma semelhante ao ChatGPT, onde se afinam as variáveis, desde a cor dos olhos, o cabelo, ou se este é humano, meio elfo ou um orc, etc. E essas combinações podem ser personalizadas e adaptadas ao estilo e design do universo de um videojogo ou de um artista.

Em Portugal, também já está a ser adotada a IA pelas equipas de Quality Assurance (QA), que são os responsáveis por testar os jogos e validar a sua qualidade, encontrando bugs ou melhorias gerais a serem feitas. Esse trabalho é feito por colaboradores que testam o jogo realizando diversas ações para verificar que estes funcionam como seria esperado. “No entanto, dado a complexidade dos videojogos, nem sempre é possível garantir que todo o espaço de interação é testado antes de um lançamento, levando a que certos erros sejam apenas detetados mais tarde pelos jogadores, o que pode comprometer a experiencia e a reputação dos estúdios”, explicou ao SAPO TEK Diogo Rato, cofundador da Testwaves.

O projeto da empresa, que venceu este ano o prémio António Brandão de Vasconcelos, é usar inteligência artificial para aumentar a capacidade de teste dos estúdios de videojogos. O modelo da empresa foi treinado com a reutilização das sessões de teste dos humanos, permitindo à IA executar essas tarefas, alargando a cobertura dos testes. Isso abre uma oportunidade para que os colaboradores se foquem em outras áreas, dando aos produtores um maior grau de confiança antes de colocar o seu videojogo no mercado.

Diogo Rato
Diogo Rato, Cofundador da Testwaves.

Para a Didimo, o uso da IA não significa a substituição de trabalhadores, um dos medos da indústria. “O objetivo é automatizar tarefas repetitivas e desta forma melhorar a produtividade, em qualquer setor, quase como um assistente pessoal, adequado às necessidades de cada colaborador”. Para si, a IA é uma ferramenta, semelhante ao Photoshop, email ou qualquer outra tecnologia que as pessoas adotam regularmente. “Num futuro próximo, todos utilizarão a IA no seu dia-a-dia”. Mas João Orvalho considera que a IA não vai substituir a visão, estratégia e as competências pessoais únicas. “Com a IA ao alcance de todos, será possível valorizar o conhecimento individual de cada um, assim como a visão criativa.”

Diogo Rato salienta que a aplicação de IA em videojogos não é uma novidade. Os algoritmos que ajudam a criar conteúdos, tais como cenários gerados de forma “procedimental”, assim como modelos que guiam o comportamento das personagens NPC (personagens não controláveis) ou Bots (inimigos que substituem os humanos). “Existe um precedente de várias décadas onde técnicas de IA foram utilizadas em videojogos”, refere o cofundador da Testwaves.

Destaca que o acesso fácil a ferramentas de IA pode levar um produtor de videojogos a produzir, com pouco esforço, um resultado inesperado e com utilidade. Mas considera que existem ainda muitos desafios pela frente, desde a necessidade de controlar o que é criado para se adequar às necessidades do jogo, assim como garantir a legitimidade do conteúdo utilizado para a aprendizagem.

Além de ajudar a produzir os conteúdos, a IA poderá estar diretamente integrada no videojogo, modificando os processos internos dos estúdios. Diogo Rato dá como exemplo a ajuda da IA na identificação de fraudes e comportamentos anormais durante um jogo, assim como facilitar a tradução e localização dos conteúdos. A Testwaves procura produzir mais valor ao reduzir o esforço e aumentar a cobertura dos testes em jogos.

Apesar da redução de custos provado pela utilização de ferramentas de IA em algumas atividades necessárias para a produção de videojogos, “não é garantia de que o resultado final será ajustado às expectativas dos produtores, dos jogadores e do mercado”, disse Diogo Rato. No caso da sua área, o processo de Quality Assurance é frequentemente repetitivo, não permitindo aos estúdios mais pequenos investir os seus recursos em tarefas mais criativas, acrescenta. E por isso, a Testwaves não pretende substituir os trabalhadores humanos por IA, mas expandir as suas capacidades, passando os testes mais repetitivos e monótonos à inteligência artificial e libertar as pessoas para testes mais criativos.

A IA também pode ser um “escritor fantasma”

Numa altura em que Hollywood se depara com uma das maiores crises nos últimos anos, devido à greve dos escritores e roteiristas, mas também de atores (estes aparentemente afetados diretamente pela IA substituir a sua presença nos filmes sem contrapartidas), a escrita nos videojogos está também a ser ajudada pela IA.