Com que linhas se desenha o futuro? Com que materiais se constrói? Como se divide, como se prepara para a mudança o edificado ao longo dos tempos? Ou como se corrige o que, ao longo dos tempos, erraticamente fomos fazendo? Hoje, mais do que nunca, com a iminência de crises (como a climática) que ameaçam severamente o nosso modo de ser, preconceitos que durante anos nortearam o pensamento são postos à prova – tal como o lugar prescritivo do especialista. Neste questionamento, a arquitectura não é excepção, e boa parte das perguntas são resultado do trabalho de algumas e alguns dos agentes mais interessantes da área. “Penso que há uma enorme quantidade de coisas a fazer para mudar a profissão”, diz-nos uma dessas pessoas, Charlotte Malterre-Barthes numa pequena entrevista por e-mail, antecipando a sua passagem pela 6ª edição da Trienal de Arquitectura de Lisboa.
Charlotte Malterre-Barthes, arquitecta, urbanista e académica – quer na vertente da investigação, quer na de ensino, com passagem como professora assistente pela Harvard Graduate School of Design e presença na Swiss Federal Institute of Technology Lausanne –, é um das convidadas do painel do segundo dia de Talk Talk Talk, o vertical da Trienal dedicado a conversas e debates e que conta com alguns dos nomes referenciais da arquitectura contemporânea. Subordinado ao tema “Como reimaginar os instrumentos da arquitectura em prol de uma economia circular?”, o painel juntará a Marc Angéli, investigador e professor, e Raul Mehrotra, urbanista e também professor, a arquitecta francesa que ao longo da sua carreira não tem olhado a meios, tendo como fim o questionamento da disciplina, dos seus limites e das suas referências.
“Tudo isto tem de mudar”
“Primeiro, em termos de ensino, é preciso mudar a forma como a arquitectura em si é ensinada, o que é considerado boa prática e o que é considerado uma boa referência, porque a nossa profissão gosta de canonizar, especialmente homens brancos”, prossegue Charlotte na sua reflexão sobre o que precisa de ser feito para mudar a arquitectura. Para si, a questão não passa só por disputar a ortodoxia da disciplina num plano formal, mas por articular este debate com as grandes questões da Humanidade.
Tendo como foco da sua investigação a economia política na produção de espaços, Charlotte Malterre-Barthes reflecte sobre as relações políticas, sociais, económicas e ecológicas que se geram a partir das dinâmicas de transformação do espaço, como a urbanização contemporânea. Revelando, com o seu trabalho de pesquisa, matizes que escapam a um olhar corporativo e possibilidades que escapam ao profissionalismo acético, Malterre-Barthes procura alavancar um espírito de mudança para além das fronteiras que hoje restringem o pensamento logo à partida. “Privámo-nos de todo um repertório de outras soluções e formas de fazer arquitectura, que foram consideradas secundárias, primitivas ou subalternas. Tudo isto tem de mudar, de modo a descentralizar os cânones. ‘Descarbonizar’ significa também despatriarquizar e descolonizar a arquitectura e a universidade. Sabemos que isto é muito difícil, mas é um trabalho permanente e uma luta diária”, conclui, elencando as mudanças que devem começar ao nível da educação.
Mas a mudança não se fica, ou não se pode ficar por aí. Para Charlotte, “não é justo que se ponha todo o peso da reforma nas gerações mais jovens” e “as práticas também têm de mudar”, não são só os ensinamentos. Reflectindo sobre os moldes em que actualmente se pratica a arquitectura, a investigadora aponta o dedo aos escritórios de arquitectos e à forma como lidam – ou não – com a mudança. “A maioria dos escritórios de arquitectos hoje em dia estão presos em sistemas que não permitem a introspecção e a reforma”, diz-nos, alertando para a forma como “o discurso da sustentabilidade, brandido por toda a gente na indústria, esconde um modus operandi inalterado, quer nos escritórios, quer nos locais de construção”. Para si, a mudança necessária de que a arquitectura precisa “desesperadamente” é basilar: “em direcção a melhores formas da prática, que priorizem a preservação, o cuidado, a gestão dos recursos, o design para a desmontagem e a economia circular”. “Em suma, de emancipar as práticas arquitectónicas das estruturas debilitantes em que se encontram entrincheirados”, conclui.
“Acho que temos de mudar tudo, alargar as referências, fazer o necessário para recuperar tudo o que foi apagado em relação à produção espacial levada a cabo por outros que não são homens, brancos, ou ícones ricos, mas também tudo o que está ligado ao que consideramos construir correctamente.”
Como vai expondo ao longo das respostas – e de forma mais aprofundada ao longos dos vários trabalhos que podemos encontrar online, como a palestra Manouvering Boundaries com um título já por si sugestivo –, o exercício de emancipação da arquitectura (se assim lhe podemos chamar) passa por uma redefinição de todas as suas fronteiras – incluindo, se necessário, um questionamento do que se consideram arquitectura e de quem se envolve nesse processo. “Temos de tentar sair da nossa área especialização, e considerar que existem outras formas de construção. Também temos de deixar espaço para outros conhecimentos e valorizar outras produções que não são aceites como tendo valor, e admitir que se pode ser um arquitecto que não constrói”, comenta Charlotte. Para si, a própria divisão entre quem constrói e não constrói é profundamente patriarcal, dividindo os que fazem dos que pensam em vez de unir estas duas dimensões. Mas a mudança está em vigor, diz-nos, “penso que a maré está a mudar e se, finalmente, admitirmos que a construção também é destruição, aqueles que constroem são aqueles que, em última instância, destroem! Os valores estão a mudar, e é por isso que existem tensões. Algumas pessoas sentem que o poder lhes está a fugir. Isso é bom!”.
Quanto às nuances da mudança, a académica testemunha um sentido de urgência muito grande dos estudantes, tanto nos Estados Unidos da América, como na Europa, mas aponta para um gap geracional entre alguns professores e os seus alunos, que “já não são de gerações nascidas no Holoceno; nasceram no Antropoceno (um termo que também questiono) e são confrontados com um futuro praticamente impossível”. É a esta urgência transportada pelos alunos que Charlotte considera que a Academia deve responder de imediato. Sem querer pôr demasiada pressão da reforma nos mais jovens, como dizia anteriormente, a sua preocupação é que lhes sejam dadas as ferramentas indispensáveis para lidar com os desafios do futuro e o espaço para o inventarem: “Vai sendo tempo das escolas de arquitectura e a própria indústria declarar a emergência climática, para que possamos dar aos alunos as ferramentas de que precisam para, por exemplo, construir de forma diferente, usar materiais de forma menos destrutiva, ou para que possam ser arquitectos que desenham formas de viver, sem construir nada novo, sem que sejam ostracizados.”
“Parar tudo, mesmo que momentaneamente”
Se o foco do trabalho de Charlotte Malterre-Barthes é claro, as formas que esse trabalho toma são diversas. Desde a criação de bandas desenhadas que simplificam as suas ideias, as palestras, conferências, investigações, ou ciclos de trabalho, como o que desenvolveu no Cairo, imaginando novas formas de construção e envolvendo os construtores locais nessa reflexão, a arquitecta francesa procura não só chamar à atenção como criar a plataforma para um pensamento crítico dos problemas.
Recentemente, em 2021, aquando da sua passagem pela Harvard’s Graduate School of Design, lançou um marcante movimento neste sentido. “Global Moratiorium on Construction” materializou-se sobre a forma de mesas redondas e, conta-nos Charlotte, revelou-se “uma forma muito útil de fazer novos amigos, novos inimigos, mas também uma ferramenta para a reflexão” e ainda “uma ferramenta educacional incrível”. Das quatro conversas que balizaram o projecto, resultou a sensação do que há por fazer na abordagem à relação entre a construção e a sua envolvente. “Ainda mal começámos a descobrir o que significa habitar o mundo sem destruir e sem estar numa lógica de extracção material.”
“Fazer uma pausa em novas construções – mesmo que momentaneamente – cria um enquadramento de pensamento radical sobre alternativas ao actual regime de produção espacial e ao seu suspeito imperativo de crescimento.” E é nesse enquadramento que, acredita, muito pode – e tem de – mudar: “Desde a redistribuição da habitação até à reinvenção das cadeias de geração de valor, de medidas anti-extractivistas até mudanças estruturais profundas, de reformas curriculares até à eliminação da cultura de exploração dos escritórios, do respeito pelo solo até à adopção de processos de reparação, reutilização e desmontagem, toda uma mudança dos processos de concepção e construção se apresenta à nossa frente.” Se essa mudança parece planetária, é porque assim tem de ser – por muito que o desafio se afigure como imenso, Charlotte não descura nem despreza a dificuldade e a imensidão daquilo a que se propõe; afinal de contas, não pretende mudar o mundo sozinha, mas contribuir para uma mudança que tem obrigatoriamente de passar pelo crivo da arquitectura, ainda que para mudar o mundo seja importante não esquecer de mudar o que se entende como tal.
“A tarefa é enorme: exige uma forma alternativa de fazer mundos, uma que exija um inventário cuidadoso dos stocks, a reavaliação dos processos de cuidado e manutenção, uma proibição global da demolição, o compromisso do Estado com a habitação pública, planos de zoneamento justos, controlo robusto das rendas, políticas contra o abandono e reformas de propriedade; mas também [exige] protocolos sobre o fim de vida dos materiais, sobre a manutenção, a serem imaginados, concebidos, formulados, planeados e implementados de acordo com o contexto.”
Parte dessa mudança passará desde logo pelo Auditório 2 da Fundação Calouste Gulbenkian, onde hoje, dia 27 de Outubro, Charlotte Malterre-Barthes dará a conhecer algumas das suas ideias e desafios num evento para arquitectos e não só, onde os limites e as fronteiras se esbatem na tentativa constante de aproximação da arquitectura às pessoas – marca deixada ao longo dos anos pela Trienal de Arquitectura de Lisboa. Talk Talk Talk, um ciclo de conversas a acompanhar esta semana.
(Shifter)