Sabes como sangrar?

By | 19/10/2025

A festa acabou. A realidade acabou. O futuro foi abolido. É uma ótima altura para sangrar.

A falha das estruturas de organização social do passado e a implantação de governos fascistas pelo caos estão a abrir a porta a um novo modus operandi político para aqueles que, como eu, acreditam no valor da ordem, das regras, da disciplina, responsabilidade, coesão social e harmonia. Alguns chamar-nos-iam: “Os Anarquistas”.

Fomos enganados durante quase um século por mentiras que absorvemos da ordem hegemónica. Acreditámos que a política era conflito de ideias, auto-expressão, posições e discussão. Na democracia enquanto voz: uma fantasia juvenil. Felizmente, a realidade está despedaçada, a discussão é impossível, e finalmente é-nos permitido enlouquecer.

A loucura de hoje é a lei de amanhã.

A política é uma questão de sangue. Sempre foi. Sempre será.

Às vezes é uma questão de sangue literal, como o sangue de Allende a pingar nas suas roupas depois do assalto a La Moneda; o sangue de Cú Chulainn que se atou a uma pedra para morrer de pé a enfrentar os seus inimigos; o sangue de um soldado italiano derramado numa rocha na costa albanesa; ou o sangue de crianças palestinas transmitido em direto no Instagram.

Às vezes trata-se de sangue simbólico, algo em que não pensamos vezes suficientes.

Às vezes, são a mesma coisa, como quando o teu coletivo político faz uma oferenda de sangue aos Deuses da mutação.

Somos hipnotizados pela escola, os media, a família, o Estado, e o Mercado para sermos indivíduos: plenos em nós mesmos, com uma fronteira clara entre o que somos e o que não somos; uma fina camada de pele a manter o nosso sangue dentro e o mundo fora.

Ser um indivíduo é fixe, mas todos os dias…?!?!?

A obrigação dogmática de ser um indivíduo já provou ser insustentável social, física e politicamente. A fronteira deve ser quebrada. O sangue deve circular novamente. A pele deve ser rasgada. O mundo deve tornar-se vermelho.

Acordem, ovelhas do rebanho, vocês são uma ilusão.

Somos treinados para desejar autonomia e liberdade, mas colapsamos quando as temos. O fascismo prospera porque oferece aos indivíduos uma forma fácil para a coletividade: identifiquem-se com o homem forte e tudo correrá bem. Não pensem, não falem, não ajam. Sejam bons animais de estimação e tudo vos será providenciado. É paradoxalmente a mesmíssima fantasia sexual das sexualmente emancipadas, trans puppygirls maoistas. Eventualmente todas desejamos submissão a uma entidade omnipotente e omnisciente, que trate de nós e nos diga que tudo correrá bem.

Seja numa batalha ou no eterno presente, encontraremos a nossa paz.

Podes escolher entre Mussolini, o Estado Socialista, uma amante vestida em latex, os Milhares de nomes de Deus, a net cibernética de Indra, e o Steve, o gajo mais básico que possas imaginar, em quem podes projetar todas as características positivas que ele não tem, e elevá-lo a Deus para construir uma rotina de culto doméstico centrada nas suas necessidades, para te distraíres do teu próprio sofrimento.

Tu desejas comunidade, pertença, conexão e intensidade, mas falhas quando as tentas atingir. Culpas o sistema, que, sim, está em falha. A pertença, no entanto, não pode ser construída sem que renuncies a uma parte de ti, sem que desistas de uma parte da tua individualidade. Uma oferenda sagrada a algo maior que tu mesmo. A morte do indivíduo para o renascimento de uma pessoa. Um que se torna mais que um. Um ritual de sangue.

Ninguém pode fazer este trabalho por ti: aprender a sangrar com um sorriso.

A reconstrução da agência política deve passar pela reconstrução de infra-estruturas sociais de grande escala. Devemos desfazer um século de atomização, individualização, isolamento. Um TikTok viral com uma mensagem radical não nos vai salvar. As pessoas são convencidas a agir pelos seus pares, mudam a sua consciência política para encaixar nos seus grupos sociais. A solidariedade é um comportamento que se adquire. É um ponto de chegada, por isso não pode ser um pré-requisito para ação política.

A organização política é apenas instrumentalização da pressão de pares em escala.

Demasiadas pessoas estão preocupadas com o facto de estarem a gastar energia política da maneira certa, debatendo infinitamente sobre estratégias e planos que ninguém quer pôr em prática. Um jogo do faz-de-conta para revoluções políticas que nunca se irão concretizar. Escapismo para pessoas que lêem demasiada teoria política.

Toquem em relva, por favor. Os fascistas estão no poder. As políticas pré-figurativas e performativas são um luxo que não podemos mais permitir.

Uma nova forma de fazer política é necessária porque, há um século, a infraestrutura social podia ser dada como garantida. Estava lá. Era abundante. Nós apercebemo-nos de que sem uma fundação tão importante não podemos sequer agir coletivamente. Por isso, hoje, qualquer projeto político razoável deve criar a infraestrutura social para ativar as suas pessoas. Não é suficiente escrever um manifesto e esperar que as pessoas venham. Vais acabar a atrair os que já concordam contigo, provavelmente a roubar-lhes a energia de outro projeto muito semelhante. A transformar a política num jogo de soma-zero.

Se quiseres expandir o teu ambiente político, ensina ativistas ou organizadores como cozinhar. Ensina-lhes como falar sobre problemas nas relações. Organiza festas de chá, raves e clubes de costura. Cria espaço para relaxar depois do trabalho. Infiltra igrejas, clubes desportivos, ginásios, clubes de jogos e fóruns online. Transforma protestos de rua num espaço para networking: ninguém está a ouvir os teus cânticos, de qualquer das formas.

Faz amigos e torna-os agentes de mudança. Procura-os e pergunta-lhes: “Sabes como sangrar? Alguma vez escolheste sangrar? Podemos aprender juntos.”

Esta não é uma abordagem hippie indecisa à política. Não é o apelo insípido para formar comunidade de um artivista de Nova Iorque. Não é sobre sentirmo-nos bem e projetarmos uma sensação vaga de inteligência emocional na política que fazemos. É uma ação triste, mas necessária. Triste porque adiciona às relações um elemento de motivação política, e a política é sempre suja. E necessária porque sem uma rede global para meios sociais, a História não vai voltar ao movimento.

Pergunta-te: Estarei a expandir o meu ecossistema? Estará o sangue a fluir na direção certa? Estou a trazer pessoas? Elas estão a ficar? Ou com a minha política performativa, as minhas discussões, o meu egocentrismo, estou a dar à política uma má reputação? Estarei a traumatizar os recém-chegados com toxicidade desnecessária e assembleias caóticas e intermináveis? Serei responsável pelo bem estar da minha rede política?

Qualquer movimento orgânico viável deve equilibrar impacto e felicidade, capacitação e ação no seu ambiente, coração e cérebro, festas rave e quadros kanban. Um excesso de foco nas necessidades dos teus membros significa que não terás impacto. Um desrespeito pela saúde física do grupo, e maior parte das pessoas vão embora. Os mártires que ficam mantêm a organização viva, da mesma forma que um zombie pode dizer-se vivo.

O martírio é divertido, mas não resolve nada porque não tem escala.

À primeira vista, isto pode parecer um esforço gigante. Bom, e é. Há um pequeno elemento, no entanto, que direciona o campo de jogo a nosso favor. A atomização, embora normalmente lida como uma fonte de apatia, cria a condição para uma explosão de energia vital quando os botões certos são pressionados. Como uma garrafa de sumo de melancia caseiro deixada ao sol por muito tempo num dia de verão: aparentemente imóvel mas pronto para libertar um caos fermentado pegajoso.

Uma circulação sanguínea estranha, a alimentar-se a si mesma e a crescer dia após dia, a fluir de uma pessoa para outra. A crescer mais forte, a cada momento, a contrariar toda a lógica e racionalidade. Um crescendum sem fim para lugar nenhum. Como Bach. Como Psytrance.

Como o capitalismo do avesso: uma máquina que devora o lucro e o transforma em empatia.

A ordem modernista  destruiu as ferramentas que usámos para construir a realidade. Somos forçados a construir uma nova cosmogonia, mas estamos livres do fardo do Antigo.

Rejeita radicalmente as migalhas de realidade que te são dadas pelas tuas redes sociais. Constrói a tua própria realidade. Uma realidade em que sangue gera mais sangue. Uma realidade em que possamos ganhar.

“Ganhar o quê?”, podes questionar. Hoje, não sabemos. As grandes visões só podem prosperar quando existe uma realidade sólida e partilhada, que já não temos. É por isso que devemos aprender a agir sem ela. Enlouquece e subverte a própria gramática da política modernista: a visão vem da vitória, e não o contrário. Ação é pensamento. Cooperar cria consenso. Os planos são desorganizadores. A prática é planeamento. Escrever e ler torna-nos ignorantes e devemos fazê-lo com cautela.

Hoje enfrentamos uma falsa escolha entre uma postura populista — agir pelo bem do movimento — e uma paralisia racionalista, à espera da análise perfeita antes de agir. Os sistemas complexos tomam decisões sem que cada componente esteja totalmente consciente do processo. Devemos aprender a operar da mesma forma.

Somos órgãos de uma máquina global, monstruosa e suicida, mas os órgãos podem rebelar-se. Começa onde estás. Aprende a sangrar com propósito.


“Sabes como sangrar?” foi originalmente publicado no Reincantamento, uma plataforma colaborativa de pesquisa e publicação sobre Tecnologia, Imaginação Radical e Rituais.

(Shifter)