Gaza é um “laboratório de armas e repressão” mas “também pode ser de resistência”

By | 13/04/2024

Depois da guerra que tem assolado Gaza nos últimos seis meses – e à data da publicação do artigo, continua a assolar – as imagens que nos chegam tornam indesmentível o carácter dos acontecimentos, bem como o desequilíbrio de forças. Mas nem sempre é fácil termos noção da escala real da destruição. Do impacto da campanha genocida levada a cabo por Israel, da diversidade de armas que compõem o arsenal e dos efeitos para além das trágicas mortes e dos bombardeamentos mais chocantes – como a hospitais, escolas ou outros locais do quotidiano civil.

A mediatização da guerra aumentou, e também o espaço ocupado por propaganda, a especulação e o questionamento. As perguntas multiplicam-se, assim como os instrumentos e as metodologias que temos à disposição para lhes dar resposta. A proliferação de smartphones e outros aparelhos de captura, as imagens de satélite praticamente em tempo real, contas de redes sociais e outros elementos de pegada digital, são enormes fontes de informação, mas nem sempre é fácil fazer sentido da sua imensidão. Perceber a veracidade do que é publicado nas redes sociais, situar cada captura no tempo e no espaço, e ter a capacidade de ligar e relacionar os diferentes pontos que emergem de cada análise é um trabalho que requer uma grande multidisciplinaridade. É nesse campo que a Forensic Architecture se tem destacado.

Liderada pelo arquitecto, investigador e professor, israelo-britânico Eyal Weizman, a Forensic Architecture é uma agência de investigação sediada na Goldsmith, faculdade da Universidade de Londres. Nos últimos anos, o projecto tem-se destacado pela forma como o seu trabalho, que junta arquitectura a técnicas forenses, tem ajudado a procurar respostas, não só no contexto da guerra de Israel à Palestina, como noutras instâncias.

Eyal Weizman no Strelka Institute for Media, Architecture and Design, em Moscovo (Russia), em 2012. Fotografia de Ekaterina Izmestieva / CC BY 2.0

Não sendo projecto de um homem só – na sua equipa juntam-se arquitetos, programadores, jornalistas, cientistas e advogados –, o trabalho e pensamento de Weizman, no global, é indissociável do percurso da agência. O autor de livros como Hollow Land: Israel’s Architecture of Occupation e The Least of All Possible Evils: A Short History of Humanitarian Violencefaz um trabalho circular, onde umas investigações se alimentam às outras, ajudando a formular uma gramática que permita expressar a amplitude deste conflito.

Já depois do fatídico dia 7 de Outubro de 2023, Eyal Weizman falou com o Shifter sobre o projecto colonial israelita, os mais recentes acontecimentos, e a forma como tudo isso se cruza com a sua prática.

“Um conflito por espaço e um conflito no espaço”

 “A Forensic Architecture nasce no contexto da luta pela libertação dos palestinianos”, diz através do seu quadrado no Zoom. A relação é tão próxima que explicá-la ajuda a compreender melhor o conflito. Como explica Weizman, “por um lado é um conflito por espaço, por outro um conflito no espaço”. E se “para muitos é um laboratório de armas e tecnologias de repressão, também pode ser um laboratório de resistência”. Parte dessa resistência, no campo da informação, passa desde logo por conseguir perceber e provar a verdadeira amplitude da ofensiva e o real decurso dos acontecimentos.

“Este é um conflito por espaço, porque é um conflito de ocupação colonial. E um conflito no espaço porque há efectivamente destruição de edifícios e construção de outros. A destruição dos edifícios palestinianos e a construção dos colonatos. Mas é um conflito que também se passa nos media, e com a proliferação dos meios, nomeadamente os social media, percebemos que  muitas evidências são produzidas por pessoas no local”, explica. O trabalho da FA começa na arquitetura, usando o edificado como referencial para as suas investigações – para geolocalizar elementos, verificar publicações, observar os efeitos ao longo do tempo ou criar simulações realistas – mas os pontos de chegada são muito diversos. Tão diversos quanto as camadas que estão em causa neste conflito, e o sentido das narrativas em disputa.

“Em Gaza vemos o culminar de praticamente cem anos de guerra, cem anos de ocupação colonial, que agora chega à sua conclusão genocida. É a manifestação de destruição mais extrema que já vi na vida. E continua a ser intensamente contestada.”, reflecte Weizman, explicando o sentido de urgência que aproxima o trabalho do grupo de investigação deste conflito e faz com que repetidamente se envolvam na disputa dos factos, nas mais altas instâncias. Como no caso de um dos últimos relatórios publicados, em que analisam os dados apresentados por Israel no Tribunal Internacional e refutam as suas conclusões. “As provas, a arquitetura, a destruição e as provas juntam-se em reivindicações como o processo de genocídio no Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), em Haia, e também pelo Center for Constitutional Rights (CCR) contra Biden, Austin e Lincoln nos EUA.

As técnicas de análise do que se passa no terreno que se têm tornado cada vez mais populares com a mediatização de métodos conhecidos como Open Source Intelligence (OSINT) revelam-se hoje em dia cada vez mais importantes. Especialmente num conflito em que, como nos diz Eyal Weizam, um dos interlocutores goza de bastante credibilidade internacional mas “mostra coisas incorretas”. “Na maior parte das vezes, o que vemos são rótulos e interpretações incorretas, erros de interpretação dos vídeos”, diz. “Uma vez disseram que uma explosão era um foguete falhado do Hamas a caminho de bombardear o hospital Al-Ahli. E pudemos ver claramente que isso não estava correto. Era falsa a afirmação de que o míssil que mostravam era o seu próprio interceptor a dirigir-se para um foguetão no espaço”, completa.

Weizman caracteriza este trabalho, de apuramento dos factos, como um exercício contra-forense; uma tentativa de repor o rigor naquilo que é apresentado como factual; e se esta missão tem ocupado grande parte do esforço da agência, não menos importantes são os trabalhos em que as análises ajudam a trazer à tona realidades dispersas nos dados, ausentes da maioria dos debates mas estruturais deste conflito. Se num relatório apresentam evidências que contestam a versão dos factos apresentados por Israel no Tribunal de Justiça Internacional, noutro bastante recente vemos como Israel tem atacado a raiz da subsistência Palestiniana, destruindo por completo espaços agrícolas, perpetrando aquilo que apelidam de ecocídio.

Imagens de “‘no Traces Of Life’: Israel’s Ecocide in Gaza 2023-2024”, da Forensic Architecture

Estes exemplos bastante distintos mostram a amplitude do conflito, as diferentes armas ao serviço do projeto colonial, a forma como se tem prolongado pelo tempo. E a necessidade de utilizar diversas técnicas, métodos e informações para não permitir que tais atrocidades se apaguem da história.

“Uma manifestação da verticalidade da guerra”

“Há várias dimensões no conflito, a dimensão espacial é apenas uma”. É Eyal Weizman quem nos explica. Para além desta destruição material, existe a destruição política com um papel fundamental no seio deste conflito, impedindo que os palestinianos se organizem social e politicamente: “Quando se quer eliminar uma estrutura político-social e atomizar as pessoas, quebrar a cola que as une, isso é uma forma de politicídio.” Só a sobreposição das diferentes camadas oferece uma visão real da profundidade da disputa, a chamada verticalidade do conflito.  “Israel controla o espaço aéreo, e os palestinianos ainda controlam o subsolo. No meio fica a superfície da terra, com cidades e civis, hospitais e escolas. E para bombardear os túneis, Israel tem de destruir a superfície. A dimensão vertical é absolutamente revelada neste conflito” — alerta o arquitecto.

O controlo do espaço aéreo a que se refere não se restringe apenas à (im)possibilidade de operar voos, mas também a toda dimensão digital do conflito ou ao controlo sobre frequências de comunicação.  “A digitalidade faz parte do mecanismo de ocupação de Israel: a vigilância dos telemóveis, a vigilância dos movimentos, a previsão, o fluxo, o policiamento, etc. E vemo-lo também a acontecer em Gaza. Vemos que as pessoas estão a ser controladas nos pontos de controlo. Os dados biométricos estão a ser recolhidos sem a autorização , afirma, disparando de imediato um exemplo concreto e recente: “Quando Israel pediu às pessoas do norte de Gaza que se deslocassem para sul, fez com que passassem por postos de controlo com câmaras e scanners. Não sabemos exatamente o que fazem, mas o que nos preocupa é que recolhem dados faciais.”

A vigilância exercida por Israel, e o desenvolvimento tecnológico que surge à boleia deste intento, são uma das razões para que se apelide o cenário de guerra de laboratório. Weizman corrobora a ideia e alerta que o estado de vigilância presente em Gaza vai para além da nossa percepção: “A ideia de uma vigilância personalizada de uma pessoa, em que os seus e-mails estão a ser lidos por um agente, é quase uma forma antiquada de vigilância, em que é necessário examinar populações inteiras que estão sob o seu controlo.”

O momento a que se referia anteriormente, as ordens de evacuação dadas pelo exército israelita aos residentes em Gaza, foi o tema de outra das investigações do grupo, profundamente elucidativas. Nesse relatório percebe-se que a inexistência de infraestruturas de comunicação faz com que em zonas de Gaza as ordens de evacuação fossem feitas através de panfletos largados sobre as cidades. E como as ordens sucessivas, e muitas vezes contraditórias, emitidas pelo aparelho militar israelita, encurralam o povo que ali vive – fazendo-os passar por zonas sobre a tal vigilância apertada e conflito aceso, ainda que afirmando que se tratavam de rotas seguras (um relatório do próprio exército confirma o ataque sobre corredores humanitários)

Imagens de “Humanitarian Violence in Gaza”, de Forensic Architecture

Para Weizman, não restam dúvidas: o genocídio israelita em Gaza também é uma tentativa de delaminação – conceito que utiliza para descrever as diferentes camadas do conflito –, mas no sentido mais agressivo e extremo do termo. “Vemos como eles querem desenterrar a sociedade palestiniana, que está ligada a este sub-solo. E para o fazer bombardeiam o solo, deitam-lhe água, terraplanam a superfície.” – reflecte, concluindo que “é uma tentativa efectiva de arrancar um povo, como se arranca uma arma. Não é como a aplicação de um herbicida, a destruição da superfície.” 

Aos planos em decurso, de destruição completa de Gaza, seguem-se os planos de ocupação e reconstrução. Para o solo destruído, de onde as raízes palestinianas são arrancadas, já existem planos para novas ocupações israelitas. Já em Dezembro uma empresa de imobiliário apresentava os planos e maquetes 3D para a construção em zonas recém dizimadas – afirmando posteriormente que se tratava apenas de uma piada.  E há quem veja na posição costeira da Faixa de Gaza um motivo para uma futura valorização do imobiliário, como Jared Kushner, o genro e consultor para assuntos internacionais de Trump. Para Weizman, também neste momento o papel da arquitectura e dos arquitectos é fundamental e não pode ser passivo: “Temos visto arquitectos e planos arquitectónicos, alguns deles sérios, outros a provocar e a gozar com as vítimas, a humilhá-las e a assustá-las. E os arquitectos que participam nesse projecto são absolutamente cúmplices do genocídio.” 

“Os problemas do mundo são complexos e não surgem em contentores”

As investigações da Forensic Architeture não valeram só menções na imprensa internacional interessada nos conflitos geopolíticos. A qualidade visual deste trabalho multidisciplinar fez com que ultrapassasse fronteiras para o campo da arte. O culminar deste processo foi a nomeação para o importante prémio artístico britânico Turner Prize, em 2018. À data, Weizman dizia em entrevistas que “preferia perder prémios e ganhar casos”,  mas ainda hoje continua convicto de que permear estas barreiras é fundamental para face aos problemas que enfrentamos, por várias razões: “Primeiro, porque a estética, a forma como sentimos as coisas, através dos nossos sentidos, é essencial, é a forma como percebemos e questionados o mundo. E para além disso, porque toda a infraestrutura da arte e da cultura poderia ser usada para amplificar certas descobertas que de outra forma ficam contidas no jornalismo, os nossos processos burocráticos da lei.” 

A presença dos trabalhos da FA em exposições, museus ou outros espaços artísticos não é de estranhar. Para diferentes espaços em diferentes geografias levam exposições de interesse que procuram quase sempre questionar o que é possível ser dito e exposto nos espaços culturais, como escrevem num artigo publicado no The Guardian. Esta prática não só procura aproximar as investigações do público, como testar os horizontes do discurso cultural, materializando uma visão sobre a arte política em que o objectivo não é só comentar a realidade, mas intervir de facto.

Como nos diz Eyal Weizman, “se quisermos mudança política, temos de pegar no mesmo trabalho e apresentá-lo em vários contextos”. E esta necessidade não se relaciona só com a necessidade de multiplicar a audiência, mas também com o desenvolvimento de novas perspectivas sobre os problemas: “A ciência e a arte têm regras diferentes e não se tocam. Mas eu acho que temos de encontrar uma forma de navegar entre os domínios porque os problemas do mundo são complexos e não surgem em contentores. Os problemas existem, são porosos, estão ligados entre si em rede. E temos de fazer corresponder a complexidade da nossa análise e a complexidade das nossas estratégias e tácticas à complexidade do mundo tal como o vivemos.”

(Shifter)