O trabalho dos cientistas é muito, e ingrato. A atenção que lhes é dada é parca, e a especificidade do seu trabalho faz com que muitas vezes sejam vistos como corpos estranhos a uma sociedade que, reconhecendo-o ou não, depende estruturalmente do seu trabalho. E no meio de tudo isso faltam vozes que se possam fazer ouvir em sua defesa. Joana G. Sá é uma dessas vozes que se tem feito ouvir no nosso espaço público. Seja nos canais pessoais, em artigos de opinião, participações em debates – ou nos convites que rejeita em prol de painéis mais diversos.
Foi no Laboratório de Instrumentação e Física Experimental de Partículas da Universidade de Lisboa que nos encontrámos para uma entrevista, não sobre raios cósmicos ou matéria negra, mas sobre conhecimento e ciência em toda a sua envolvente social. Joana G. Sá descreve-se hoje como uma cientista social, e o caminho que fez até chegar a um laboratório de Física com esta designação foi longo e marcado por mudanças.
Licenciada em Física pelo Instituto Superior Técnico, foi numa cadeira que a fez passar pelo Antigo Reactor Nuclear de Sacavém que sentiu o apelo para a primeira mudança. O trabalho com animais fê-la virar para a biologia, e levou-a, pouco tempo depois, a candidatar-se ao Instituto Gulbenkian da Ciência em Biomedicina. Este programa era o único que, à data, Joana sabia que aceitava alunos de qualquer formação e que lhe permitiria expandir as fronteiras das disciplinas. “Havia algo de arrogante, até. Diziam-nos que pouco se aprendia até ali e que por isso qualquer um se podia juntar para aprender a sério naquele doutoramento”, conta-nos, corroborando a teoria logo de seguida. No IGC o modelo de aulas permitia aos alunos contacto com investigadores de topo de todo o mundo e de todas as áreas e isso não só lhes deu muito conhecimento como lhes deu matéria para sonhar. Joana G. Sá conta-nos que talvez mais importante do que o que aprendeu foi a expectativa que o programa criava nos alunos. Podiam não chegar ao nível pretendido, mas falhavam num nível tão alto que já era uma vitória.
“Como a minha formação é muito quantitativa, a minha abordagem foi sempre muito quantitativa, mas identifico-me como uma cientista social. Acho que os problemas que tento resolver são sociais, a forma como os tento resolver é que vem da física, da matemática, e da ciência de dados.”
Prova disso foi o passo seguinte. Com o IGC no currículo, candidatou-se a programas de doutoramento do outro lado do mundo e, tendo sido aceite em mais do que um, escolheu a renomeada escola de Harvard para estudar Biologia de Sistemas. Um doutoramento com uma grande componente prática que a fez passar mais horas dentro do laboratório, mas que nem por isso a desligou do mundo. Por esta altura, rebentava nos Estados Unidos da América, antes de chegar à Europa, a crise financeira de 2008, e as ondas de choque que provocaram não a deixaram indiferente. Estando emigrada mantinha uma ligação forte às comunidades de língua portuguesa e foi ao ver como aquelas populações eram afectadas, e como a ciência parecia desligada dos seus problemas, que começou a repensar o seu percurso… mais uma vez.
Foi depois de uma pausa, para viajar e pensar – diz-nos com alguma ironia – que lhe surgiu a ideia, que hoje parece óbvia, que a traria de volta para Portugal: “Como é que podemos usar os dados criados pela internet, pelas redes sociais, pela transformação digital para estudar comportamentos?” Foi com esse mote que voltou a uma das casas de partida, o IGC, onde ainda coordenou um programa de doutoramento para alunos dos PALOP, até que finalmente decidiu dedicar-se mais aprofundadamente à investigação em torno dessa ideia. Dessa dedicação resultou o grupo de investigação que actualmente dirige, o SPAC Lab – Laboratório de Física Social e Complexidade, um grupo que procura com recurso a análise de dados, modelos matemáticos e físicos, abordar questões sociais, e que tem na multidisciplinaridade uma das principais armas para desconstruir a complexidade.
S: Uma das palavras que surge na descrição do SPAC LAB é complexidade. É senso comum dizer que vivemos num mundo cada vez mais complexo, nesse sentido achas importante que surjam estas intersecções entre disciplinas e novas formas de olhar o mundo que nos ajudem a fazer sentido dessa crescente complexidade?
Eu acho que sim, tanto que este grupo é mesmo multidisciplinar, tem pessoas com formações muito díspares. Quer das ciências sociais, quer das ciências exatas, psicólogos, biólogos, matemáticos, físicos, pessoal da computação e até um doutorado em direito tivemos até há bem pouco tempo. Isso cria dificuldades em termos de comunicação – temos de encontrar uma linguagem comum –, mas acho que é mesmo muito importante, e que é a abordagem dos sistemas complexos que temos de utilizar agora para perceber uma série de coisas. Aliás, vou agora começar uma sabática naquele que é o melhor centro de sistemas complexos, na Áustria, exatamente porque quero perceber mais sobre o tema. Neste centro muita gente trabalha em problemas aplicados à sociedade, em áreas como a saúde, e quase toda a gente tem formação em Física. O trabalho acaba por ser muito quantitativo, mas com uma perspectiva social muito grande. E para mim foi muito bom, na sequência da crise de 2008, perceber o impacto que a ciência e a investigação têm na sociedade; perceber como podemos ajudar a resolver ou a pensar problemas sociais, quer seja do ponto de vista aplicado quer seja do ponto de vista fundamental. E como a abordagem quantitativa é cada vez mais possível.
S.: Como é que vês o surgimento da física social, ou seja, esta aplicação de métodos mais quantitativos a temáticas sociais?
Acho que há um casamento interessante. À perspectiva qualitativa, que é muito importante, junta-se o teste de hipótese quantitativo que é fundamental e finalmente se pode fazer. Uma abordagem é mais indutiva e a outra dedutiva, e agora, cada vez mais, é possível conjugá-las.
Eu vejo os dados da transformação digital, e por exemplo os modelos de IA de que se tem falado, como uma nova ferramenta para estudar as ciências sociais. Por exemplo, na questão dos enviesamentos, que é muito importante. O facto de os modelos de Inteligência Artificial serem tão bons a apanhar enviesamentos é péssimo para a sua implementação, mas é muito bom para as ciências sociais porque podem funcionar como sistema identificador. Como uma espécie de lupa. Nós conseguimos ver e estudar os enviesamentos de uma maneira que não conseguíamos antes, porque não só os temos muito visíveis, como até amplificados pelos próprios algoritmos. Vejo muito isso como uma ferramenta que pode ser muito útil para estudar comportamentos, e com potencial de impacto em imensas áreas, como a saúde pública. Ajuda-nos a perceber os comportamentos, as preferências, etc. E aí, mais uma vez, acho que a ciência pública está décadas atrás nesse processo, continua a recorrer a mecanismos clássicos, como os inquéritos, cohorts, quando temos ferramentas e maneiras de pensar nos assunto muito mais avançadas do que aquelas que utilizamos.
Esta transformação tem riscos óbvios do ponto de vista social, que não podem ser esquecidos, como a violação da privacidade, o potencial de ser usado para controlo, ou a aplicação dos tais enviesamentos, mas como ferramenta para investigação tem um potencial interessante.
“A grande diferença entre as redes sociais e uma biblioteca é que as redes sociais tendem a transformar todo o conhecimento vertical em conhecimento paralelo. Parece que podemos ir buscar um bocadinho a cada lado e formar uma ideia, mas isso não é verdade.”
S.: Essa lupa permite-nos ver padrões invisíveis e perceber alguns comportamentos bastante característicos online. Uma das investigações recentes do SPAC Lab analisou a forma como as pessoas tendem a achar que sabem mais do que sabem. Queres falar-nos um pouco do que trouxe este estudo, das conclusões?
O estudo parte, de certa forma, do efeito Dunning-Kruger. O efeito Dunning-Kruger diz-nos que os menos conhecedores são os mais autoconfiantes, e o que nós fizemos foi uma análise a uma grande quantidade de inquéritos sobre esse problema do “self-reporting” [auto-avaliação].
A questão é: eu quando digo que sei sobre o assunto, o que eu sei que pode ser testado de uma forma mais ou menos independente. Mas o que eu digo que sei sobre o assunto, pode variar por muitas razões – seja para mentir no inquérito ou para me enganar a mim própria – e é muito difícil quando é self reported distinguir entre os dois. O que tentámos fazer foi criar uma medida indireta de confiança. Essa medida indireta é, no fundo, a ideia de que em qualquer questionário de conhecimento do tipo de verdadeiro/falso/não sei, se eu sei respondo correcto; se eu não sei, digo que não sei; mas sempre que eu respondo errado é porque eu acho que sei quando a verdade não sei. Portanto, é uma medida de sobreconfiança.
Nós usámos essa medida de sobreconfiança indireta, em quase 100 mil questionários, e o que vimos é que os que são muito pouco conhecedores dizem muitas vezes “não sei”. E os que são muito conhecedores, quando não acertam, é porque dizem “não sei”. Os que respondem errado, com muita frequência, são os que tomam conhecimento intermédio. Portanto, o que acontece é que o conhecimento cresce de forma linear, mas a confiança cresce de forma exponencial e muito rapidamente se cria um desfasamento. O próprio Dunning, do Dunning-Kruger Effect escreveu sobre este artigo, a dizer que estava em linha com os resultados que eles tinham obtido, e a confirmar o que nós víamos. Eles chamaram a este efeito o Beginner’s Effect: Quando as pessoas são muito pouco conhecedoras têm noção disso, mas depois isso muda muito rápido.
Um exemplo são os movimentos anti-vacinas que raramente são compostos por pessoas que são profundamente ignorantes, ou que não têm formação. Muitas vezes são pessoas que têm formação superior, mas que não têm formação necessariamente na área. E isso é interessante porque todos nós estamos sujeitos a este efeito: a partir do momento em que sabemos um pouco, achamos que sabemos imenso. E como ninguém estuda todas as áreas, estamos sempre a sobrestimar aquilo que sabemos numa ou noutra área.
S.: Achas que esta dissonância – o facto de haver uma tendência generalizada para a sobrevalorização do conhecimento – também é um sintoma de uma crescente complexidade com que somos confrontados e de uma ausência de ferramentas e literacia para fazer sentido desse mundo?
A maneira como tenho pensado nisso é: havia uma série de conhecimentos que eram verticais, no sentido em que têm de se ir acumulando. A física e matemática são exemplos destes, em que não consegues começar o estudo por cima, tem de se ir começando pela base e ir acumulando aqueles conhecimentos. – Eu penso nisto como uma pilha de livros, em que tem de se seguir uma ordem. – Mas depois há outros conhecimentos que são horizontais, em que se consegue ir à estante e tirar um livro sem interferir com os outros. E isso aplica-se em algumas ciências sociais, humanidades ou até nas ciências da vida, onde a partir de uma certa base é possível haver esse conhecimento paralelo.
E o que acho que aconteceu, a grande diferença entre as redes sociais e uma biblioteca, é que as redes sociais tendem a transformar todo o conhecimento vertical em conhecimento paralelo. Parece que podemos ir buscar um bocadinho a cada lado e formar uma ideia, mas isso não é verdade. Há conhecimentos que são fundamentais, e as redes dão-nos só uns pózinhos. E aí volta o little knowledge, big confidence. Porque lemos uma meia dúzia de artigos sobre o assunto, e até nos damos ao trabalho de procurar meia dúzia de coisas, deixamos de conseguir ter noção do quão pouco sabemos porque não temos essa construção do conhecimento de baixo para cima. E esta inversão, de antes valorizarmos mais o conhecimento vertical e agora valorizarmos mais o horizontal, tem impactos que não são fáceis de medir.
Depois existem outras questões relacionadas com o comportamento igualmente complexas. Para dar o exemplo do Chega, tenho visto sistematicamente pessoas a dizer para a comunicação social não dar tanta atenção ao Chega, e os jornalistas respondem que estão a fazer o seu trabalho de fact-checking e de desmontar os argumentos. Mas isto mostra o pouco que se sabe sobre o comportamento e como funciona. As pessoas que fazem investigação em desinformação dizem-nos que o debunking [desmentido] não funciona, por isso quando dizem que estão a desmontar as mentiras, eu acho que só estão a dar atenção duas vezes. As pessoas que lêem os desmentidos são uma minoria, e se calhar são os já convertidos. Não há qualquer evidência de que isto funcione. E quando os órgãos de comunicação social se convencem de que estão a retirar argumentos ao partido, não é necessariamente verdade. E isto não se aplica só a este partido mas à desinformação no geral.
S.: Outro trabalho que publicaste recentemente incide sobre os mecanismos de recomendação automatizados – como os feeds das redes sociais. Esses mecanismos são, sem sombra de dúvidas, um dos grandes mediadores do mundo hoje em dia. Achas que tendemos a olhar para eles com pouca importância e não trabalhamos dimensões fundamentais, por exemplo de literacia e inclusão?
Como disse, acho que há muitos efeitos que são difíceis de aferir e medir. É difícil desenhar experiências que nos permitam perceber de facto o que está a acontecer. Até porque os algoritmos são caixas negras, nós não conseguimos perceber o que estão a valorizar. Nós aqui no centro agora temos um projeto sobre motores de busca e o papel que têm na partilha de desinformação. Há trabalho feito nas redes sociais, e sabemos que quando o Facebook e o Instagram começaram a baixar a quantidade de desinformação que víamos isso teve um efeito. Não foi preciso chegar à censura, bastou reduzir a probabilidade de serem vistos no algoritmo. Mas há menos investigação sobre motores de busca.
A pergunta de partida do projecto é: se eu passo a vida a visitar sites de desinformação e depois vou a um motor de busca o que é que este me vai dar. Nós criámos um sistema com bots que andam a colecionar cookies e a fingir que são pessoas; uns visitam sites de informação, outros vão a sites menos credíveis, outros vão a sites com baixa informação mas não necessariamente de desinformação. Depois, com esses perfis, vamos fazer exatamente a mesma busca em diversos motores de busca. E nós já encontramos diferenças relevantes. A Íris Damião está a fazer um piloto com o conflito do Hamas com Israel, e percebeu que basta mudarmos o IP do bot, por exemplo de Israel para a Arábia Saudita para o tipo de informação que é dada ser completamente diferente.
Neste projecto um dos objetivos, para além de fazermos este lado de investigação, é desenvolver uma app ou algo do género para que as pessoas possam fazer pesquisas como se fossem um outro e perceber isso. Em vez de fazer pesquisas com o seu perfil, queremos que o utilizador possa optar por um perfil de um homem de 60 anos que vota no partido republicano, para que possa perceber quão diferente é a bolha. Isto é, quão diferente é a realidade por influência completamente algorítmica, e como isso pode perpetuar essa bolha e a dificuldade em ver e compreender o outro. É importante perceber que a informação que as pessoas têm acesso não é a mesma. Apesar de já começar a haver esta ideia de que as redes sociais são uma bolha, ainda há a ideia de que os motores de busca são neutros, e não são.
“Eu ponho a diversidade na linha dos valores da Revolução Francesa. Acho que em vez de ser três, deviam ser quatro: igualdade, liberdade, fraternidade e a diversidade. Temos que trabalhar ativamente a diversidade como valor em si mesmo.”
S.: Na conclusão do tal capítulo sobre os sistemas de recomendação, falam de um acrónimo para melhorar a forma de desenvolver os sistemas de recomendação – ATI: Acceptance, Training and Inclusion. Queria falar sobre este último termo, a inclusão. Um tema que te é muito caro é a igualdade de género, e a representatividade, por exemplo, já várias vezes tornaste pública a tua posição de rejeitar convites para painéis onde não há paridade. Isto também acaba por ser uma forma de garantir que há uma maior representação de uma forma de complexidade que é a diversidade humana – as experiências, desejos, sensações?
Eu ponho a diversidade na linha dos valores da Revolução Francesa. Acho que em vez de ser três, deviam ser quatro: igualdade, liberdade, fraternidade e a diversidade. Temos que trabalhar ativamente a diversidade como valor em si mesmo. Eu digo que não vou a eventos se houver mais do que 70% de homens brancos, porque a diversidade vai muito para além do género, embora essa seja a dimensão que acaba por ter mais atenção. E continuo, sistematicamente, a rejeitar convites por esse motivo.
No início as pessoas levavam muito a mal, agora já compreendem. Até me ofendiam, diziam que era burra e que não ir era bem pior – como se eu não tivesse pensado no assunto. Mas termos pessoas que pensam em problemas diferentes é muito importante para a nossa sociedade e para as nossas culturas. Também por isso é que me assusta um bocadinho a maneira como os desenviesamentos são feitos, por exemplo no ChatGPT. Porque vamos buscar os mesmos programadores com a mesma visão, para perceber como é que nós queremos que a sociedade seja. Sem o distanciamento necessário para perceber que existem outros pontos de vista. E aqui ainda há outro lado igualmente assustador, que é a ideia de perpetuação.
A sociedade é dinâmica, mas se cristalizarmos nos algoritmos os valores que temos agora, torna-se ainda mais difícil corrigi-los. Torna-se mais difícil criar o espaço para que possamos evoluir do ponto de vista social, porque é algo a que nós, naturalmente, tendemos a resistir. Todos nós somos resistentes à mudança. Todos. E se criarmos algoritmos que nos cristalizam num certo sistema de valores, ainda mais difícil essa mudança pode ser. E este tipo de questões são sociais, não são técnicas.
Um exemplo clássico é o sistema de quotas. Nós andamos há décadas a decidir se queremos ou não o sistema de quotas. E agora alguém pode implementá-lo só porque tem vergonha dos resultados de algoritmo sem nós sabemos. É muito fácil pôr num algoritmo um sistema de quotas sem que ninguém saiba porque é uma caixa negra. Este tipo de valores começam a ser programados, não no sentido clássico da programação, mas como uma espécie de design social diferente, muito pouco escrutinável. Num processo que não passa por legislação, não passa por uma discussão pública, passa por alguém a enfiar num algoritmo um sistema de valores, que é o seu ou da sua equipa ou do seu grupo. Acho esse lado muito importante e que não está a ter a atenção devida.
S: Mencionaste a forma como os modelos são desenviesados, queres aprofundar um pouco mais?
Durante o treino de um modelo, estabelecem-se uma série de relações na matriz, o exemplo clássico é ‘homem está para médico como mulher está para enfermeira’, e os enviesamentos acontecem porque há mais incidências do ponto de vista frequentista de uma determinada relação. Mas não é suposto que quando fazemos uma pergunta sobre o assunto que ele nos responda com este viés, então é preciso retirar esta relação. E isto é feito praticamente à mão.
Desenha-se um gráfico, em que num eixo tenho homem e mulher e depois tenho a lista de palavras que estão associadas a cada género. E há algumas palavras que estão muito associadas tipo mãe, pai, tio, tia em que nós queremos manter essa associação, mas há palavras que estão mais associadas a um género e há que decidir se queremos ou não essa associação. E essa dimensão é quase arbitrária.
Isto são coisas que alguém decide, que alguém na OpenAI terá discutido e decidido. E a questão é: como é feita esta escolha? Quais são as questões e os valores? Há aqui duas questões muito importantes. Uma é a evidência de que estamos a introduzir valores muito específicos de um grupo e de uma cultura num sistema global, porque a equipa que desenvolve e corrige tem um certo tipo de valores. Mas há um problema ainda maior inerente à forma como se faz a correção dos enviesamentos: é que só conseguimos corrigir os enviesamentos que nós sabemos que temos.
Estamos condenados a que todos os enviesamentos que nós não sabemos que temos, muito mais subtis, continuem a estar lá, sem que tenhamos uma maneira sistemática de avaliar. Sabemos que os algoritmos perpetuam os enviesamentos. Sabemos que provavelmente até os amplificam, pelo menos a alguns deles, sabemos que pode haver relações interseccionais entre esses enviesamentos, mas não temos uma forma sistemática de os identificar. Já nem sequer digo de os corrigir, porque aí voltamos à questão do sistema de valores. Mesmo quem fala muito sobre este tema, como a Timnit Gebru, menciona sempre os mesmos exemplos, porque temos muita dificuldade em descobrir os outros.
Há um caso, que costumo dizer que é o maior escândalo que nunca ninguém ouviu falar, que foi a queda do governo dos Países Baixos por causa de um algoritmo enviesado. Isto aconteceu porque eles queriam desenvolver um algoritmo para identificar fraude nos sistemas de segurança social, e um dos gatilhos era o último nome não ser holandês. Foi um escândalo, e o governo caiu. Deve ter sido o primeiro caso de uma consequência política tão grave causada por um algoritmo enviesado. E na verdade, eles tinham tentado desenviesar o modelo para uma série de coisas, mas não lhes ocorreu a questão do nome.
Temos de assumir que estes organismos estão longe de ser neutros, que perpetuam os enviesamentos, que provavelmente ainda os amplificam sem que nós saibamos.
“Nós fazemos isto por honra do espírito humano”
S.: Mudando de tema, o que achas que a democracia pode beneficia ciência? Isto é, será qu poderíamos olhar para a ciência não tanto como aquilo que nos vai dar um novo algoritmo espectacular, uma nova rede social, ou um novo telemóvel, e mais como meio de melhorar estes sistemas tão complexos como que temos que lidar nos países, como a educação ou a saúde?
Eu tenho uma visão da ciência muito pouco utilitarista. Acho que devemos financiar a ciência como financiamos a cultura, ou as artes, não tem de servir para nada. A procura do conhecimento em si próprio é algo que eu acho que as sociedades devem valorizar. Mas depois, tipicamente, o que acrescento a esta frase, é que há vários exemplos de descobertas que foram feitas, única e exclusivamente, porque os cientistas eram curiosos, e que acabaram por dar imenso à sociedade. Então o discurso acaba por ser ambivalente. Por um lado, dizer que a ciência deve valer por si própria, por outro mostrar os bons exemplos que resultam daí.
Pessoalmente acho mesmo que o conhecimento em si é valor. E que uma sociedade que percebe isso e que apoia a sua comunidade científica, tal como apoia a sua comunidade artística, é uma sociedade mais evoluída. Mas essa é uma dificuldade que temos tido, transmitir porque é que saber é bom, porque é que a curiosidade é boa, e acho que isso se tornou num limite de inspiração. Não estamos a conseguir inspirar suficientemente as pessoas, os ministros, os governantes, para lhes mostrar como só a procura é válida. Então o que acabamos por fazer é falar das aplicações para conseguir financiamento.
Acho que tem havido esta mudança do paradigma, esta incapacidade de explicar porque a ciência é algo que queremos fazer porque podemos fazer, – há uma frase muito bonita do Carl Jacobi que diz algo como: “nós fazemos isto por honra do espírito humano” – e a adoção de um paradigma em que nós procuramos muito as aplicações; queremos desenvolver um novo algoritmo, um telemóvel, criar laser, por aí fora. Mesmo que não seja criar um produto, parece que a ciência tem de resultar em algo palpável. E eu resisto muito a isso, acredito que a fazemos porque é algo que nos distingue, e que distingue uma sociedade evoluída.
Contudo, isso não impede que a ciência possa ter um papel para a maioria como as pessoas pensam. O que é que eu acho que está a acontecer, especialmente no caso português, é que não há a compreensão do papel que a ciência pode ter na sociedade, porque nós não valorizamos o pensamento livre. E então, há um esmagamento da comunidade científica à base da precariedade, um bocado que acontece com os jornalistas, que acontece com os artistas. É retirada a capacidade de presença no espaço público porque as pessoas estão a lutar pela sua sobrevivência e têm medo. E se alguns jornalistas escolhem essa profissão porque querem ter esse impacto social, não me parece tanto o caso dos cientistas. Estas pessoas querem ter capacidade para fazer o seu trabalho, para dar o seu melhor, e de repente são postas em situações profundamente desumanas.
Agora há instituições que basicamente dizem aos seus investigadores: já não somos um instituto de investigação fundamental, e agora fazemos serviços. Vendemo-nos às CCDRs, ao PRR, às empresas, e nós damos o que eles querem. Se olharmos para Espanha, um bolo gigante do PRR deles foi para ciência, para a renovação do parque de infraestrutura, para novos equipamentos, novos microscópios, para terem coisas que funcionem, para que não chova dentro das universidades, para a renovação do parque científico. Nós em Portugal não temos a mesma visão, não há dinheiro para ciência no PRR, e isso mostra a falta de estratégia.
S.: Há algumas rubricas, por exemplo no ramo da IA, mas é para desenvolvimento de aplicações…
Exatamente, mas aí é para produto. E para mim isso gera duas coisas consequências negativas. Primeiro perde-se a tal perspectiva de fazer ciência ou de se gerar conhecimento, porque queremos desenvolver produtos. Depois, como é um financiamento de muito curto prazo, só conseguimos desenvolver produtos de curto prazo. Nós não temos sequer capacidade de junção de talento e de criação de uma massa crítica competitiva. Temos de perceber que todo o nosso financiamento para a transformação digital do PRR a 5 anos é uma gota em comparação com o que a Microsoft está a investir na OpenAI, para dar um exemplo.
Então, mesmo pensando na questão de Inteligência Artificial, nós não só não temos uma visão integrada de longo prazo que seja ambiciosa – no sentido de dizemos ‘queremos ser isto, queremos ser estas pessoas’ – como, por não termos a capacidade de centralizar os esforços, acabamos a dispersar os recursos. Cada um está a fazer o seu chatbot, cada um está a fazer o seu algoritmo de identificação de imagem, cada um está a fazer o seu passinho. E todas essas coisas são importantes, não quero desmerecer isso, mas esta não pode ser nossa estratégia. A União Europeia de facto está a investir, e há vários projetos, mas a sensação que eu tenho é que é, como disse, tudo disperso. E o bolo que já não é gigante mas que era bom, é tão dividido que cada um fica com migalhinhas e não podemos ambicionar a nada de grande. E em breve, quase nenhum Estado vai ser capaz de competir com as empresas.
Mesmo pensando no Digital Services Act, e na maneira como se pensa nisso do ponto de vista europeu. Nós estamos condenados a tentar regular o que os outros fazem, e andamos sempre atrás. Porque é que a União Europeia não faz ao contrário? Por que nós não fazemos provas de conceitos que mostrem o que é possível? Nós podemos ter sistemas de Inteligência Artificial Éticos, que protejam a privacidade, e devíamos começar por financiar cá o tipo de sistemas que queremos. Porque depois não andamos atrás e a ver os que cumprem ou não cumprem. É feito de raiz da maneira como nós queremos. A expressão que eu tenho usado é que precisamos de um CERN ou uma ESA para IA. Nós precisamos de uma grande infraestrutura europeia que agregue os diferentes países que tenham uma visão centralizadora com um objetivo longo prazo, que junte massa crítica.
S.: E mais uma vez voltamos à complexidade. Esses problemas são tão complexos que naturalmente vai para desenvolvimentos em outras áreas a tentar estudar aquele problema.
Sim, estamos todos a competir por migalhas em vez de estarmos a tentar construir algo comum, que seja bem comum não só para a Europa, mas para o mundo todo, como se fez com o CERN. As descobertas do CERN são da humanidade, incluindo as que não eram expectáveis, as que não foram previstas. E houve uma quantidade enorme de indústria que foi gerada por causa do CERN, em diversos sectores. Há todo um desenvolvimento tecnológico que é feito à boleia de uma pergunta fundamental que seja unificadora. Que ponha grandes pessoas, grandes cérebros e grande capacidade de trabalho a olhar em conjunto para um objetivo comum.
Nós não conseguimos prever e não conseguimos antecipar os resultados da ciência. Portanto, este tipo de financiamento muito focado no fim é absolutamente limitador. É pequenino, é mesquinho. Nós acharmos que a nossa mentezita consegue identificar o que é que vai ser importante daqui a dois ou três anos, é pensar muito pequeno. As grandes invenções, as grandes descobertas não conseguimos prever. Nós não conseguimos fazer uma proposta a dizer: “Eu vou descobrir isto daqui a cinco anos para ver se funciona”. Nós não conseguimos antecipar o sucesso. Podemos criar condições para que ele surja, e o que estamos a fazer é o oposto. Nós estamos a quase a criar condições para que o sucesso não surja. Subfinanciamento, precariedade, vistas curtas, só financiar a curto prazo e projetos, não valorizar a ambição. É exatamente o oposto.
“A expressão que eu tenho usado é que precisamos de um CERN ou uma ESA para IA. Nós precisamos de uma grande infraestrutura europeia que agregue os diferentes países que tenham uma visão centralizadora com um objetivo longo prazo, que junte massa crítica.”
S.: Como se tentássemos que a ciência fosse mais eficiente, quando a prática científica é quase o contrário, a tentativa e erro…
Já nem sequer é ciência. O que nós tentamos é desenvolvimento tecnológico. E a ciência, a descoberta, é feita de falhanços. Eu costumo dizer que uma coisa engraçada, que separa a ciência das terapias alternativas, é que esses movimentos nunca erram. Nunca alguém ouviu uma retração do horóscopo. Nunca foi publicado um “desculpem lá, vocês que leram isto a semana passada, mas enganámo-nos”. Nunca acontece, nunca se enganam. Têm sempre a certeza absoluta. Isso para mim é o sinal de que não é ciência. Porque a ciência é tentativa e erro. É uma aproximação falível e incompleta que depois eventualmente funciona e faz com que consigamos fazer um sensor aterrar num asteróide, ou algo do género.
3% do PIB em ciência
S.: Por falar em pensamento de longo prazo, num outro artigo que publicaste, já há mais tempo, falas num compromisso de 3% do PIB investido em Ciência e Inovação. Queres falar-nos sobre este valor?
Esse valor, 3% do PIB, não é meu. É o valor do compromisso que os Estados europeus fizeram na estratégia de Lisboa. Há vários anos que os 3% do PIB para Ciência e Inovação estão inscritos na União Europeia, mas muito poucos países lá chegaram.
Primeiro o que se falava era 3% do PIB. Depois começou a falar-se de 3%, sendo metade do Estado e metade do privado, que não era a ideia inicial e passou a ser. E agora cá em Portugal já falam em 2/3 privado e 1/3 público. Portanto há uma desistência completa do próprio Estado chegar sequer a 1,5%. Nós temos estado muito mais perto do 0,7 do PIB em investigação em ciência. É ridículo, é mesmo muito pouco, e é contra os acordos europeus.
E há um lado ainda mais perverso nisto. Muito do dinheiro que é declarado pelas empresas como sendo investimento privado é, na verdade, investimento público. Porque criámos um problema de conflito de interesses difícil de resolver, que é o seguinte: o Estado tem interesse em que as empresas declarem muito investimento privado em ciência e inovação, para poderem cumprir os 3% de compromisso com a União Europeia, então criaram benefícios fiscais para as empresas declararem esse valor. E criaram um mecanismo em particular que se chama o SIFIDE, em que as empresas podem ir buscar do seu IRC o dinheiro que investiram em ciência e inovação. Então, por um lado, as empresas têm um enorme incentivo para declarar o mais possível, porque depois podem ir buscá-lo com benefícios fiscais através do SIFIDE. E o Estado tem interesse em que elas declarem, que é para poder dizer “olha, tanto investimento privado que nós temos” e na prática este investimento é pouco fiscalizado. Portanto, as empresas declaram o que entendem e o Estado fecha os olhos e diz que tudo é verdade. E então temos o caso incrível em que as maiores empresas a declarar este tipo de investimentos são bancos.
Outro dado revelador é que só 8% dos doutorados é que estão em empresas. Como é que nós temos quase ⅔ , ou vá, metade, da investigação e desenvolvimento nas empresas, mas só 8% dos doutorados é que lá estão? E como é que eles declaram milhões de investimentos se não há pessoas, não há qualquer tipo de output. É que nem sequer há patentes, a maioria das patentes estão nas universidades. Isto é tudo um sistema de nos atirar areia para os olhos.
Na verdade, o investimento real, em Ciência e Inovação, em Portugal, é mínimo. O orçamento da FCT, no fundo, não aumenta ao ritmo da inflação, pelo que neste momento os investigadores perdem dinheiro. E com o mesmo valor de projetos nós conseguimos fazer cada vez menos porque estamos tão sujeitos à inflação como os outros sistemas. E o pior é que como se perde esta compreensão de que a ciência é importante, o dinheiro não é visto como investimento em ciência. Qualquer dinheiro que é dado é visto como uma coisa para os calar quase, ou na eventualidade de que algo possa vir a dar produto. E ficamos com esta obsessão das startups, com esta obsessão dos patentes…
S.: E depois só restam os apoios europeus como os da ERC (European Research Council) com que vocês estão a trabalhar actualmente…
A própria ministra [do anterior governo], Elvira Fortunato, disse que a estratégia para os grandes financiamentos era apoiar cientistas portugueses para concorrer a ERC. Ou seja, demitimo-nos de ter estratégia e esperam que outros avaliem por eles. No fundo ao dizermos isto, o que dizemos é que o Conselho da ERC vai decidir quais são os projetos importantes em Portugal. ‘Eles que o façam, porque nós aqui não temos a ver com o assunto e vamos continuar com a nossa miséria de financiamento.’ Mas depois surgem 120 milhões para uma área que de repente passa a ser prioritária, que é a área dos semi-condutores. Portanto, neste momento há mais dinheiro para estes projetos, para esta investigação, do que para todos os projetos, de todas as áreas científicas no resto do país.
E porquê? Por que é possível que isto aconteça? Eu não tenho capacidade de discutir se esta é de facto uma área prioritária ou não. É uma das áreas prioritárias da União Europeia, e acredito que isto seja importante. A questão é que a decisão não pode ser minha e não pode ser só do Ministério. Qualquer país tem um Conselho Consultivo real que ajuda a desenhar estratégias a cinco anos, ou aos anos que forem, que diga onde temos de investir e porquê, e desenhe um plano que não mude cada vez que muda o ministro.
Esta dependência dos ciclos políticos agrava ainda mais o estado de falta de financiamento e a precariedade. Os nossos órgãos de financiamento da ciência estão profundamente dependentes dos ciclos políticos. Ao contrário, por exemplo, da cultura, em que há uma grande parte de financiamento público mas não há tanta dependência porque há mais diversidade. Praticamente todas as câmaras têm uma vereação da cultura, muitas associações apoiam a cultura, a ciência não. Na ciência há uma dependência enorme deste financiamento do Estado. Não temos cultura de mecenato, não temos cultura das associações locais, nem de vereações. A única exceção que eu conheço é a Câmara de Oeiras, que dedica já há algum tempo 1% do seu PIB, 1% do seu orçamento, a ciência e a inovação, o que no caso da Câmara de Oeiras é muito. Quando se tentou fazer a mesma coisa com a Câmara de Lisboa, a Câmara de Lisboa disse que não. Ninguém estranha que haja investimento municipal na cultura ou na educação, mas que para a ciência não haja.
S.: De facto, não há uma vereação da ciência, nunca tinha pensado nisso.
Por que é que os alunos todos fazem férias desportivas, e as câmaras todas apoiam férias desportivas, e não apoiam férias científicas? Por que não há bolsas? Por que não há capacidade de atração de investigadores para as nossas cidades? Em Lisboa, o alojamento é tão caro; por que não criar, para além das residências para estudantes, residências para investigadores, para cientistas?
“Por que é que os alunos todos fazem férias desportivas, e as câmaras todas apoiam férias desportivas, e não apoiam férias científicas? Por que não há bolsas? Por que não há capacidade de atração de investigadores para as nossas cidades?”
S.: Uma das coisas que parece faltar, ou que pelo menos dá a ideia que falta nessa criação de uma estratégia, também é o conhecimento de prática, do dia-a-dia. E uma coisa que distingue o teu perfil é que és uma cientista engajada, dás opinião e publicas artigos. Achas importante que os investigadores ocupem esse lugar?
É muito difícil. Eu não julgo os meus colegas que não têm esta presença. Não há qualquer benefício em falar publicamente contra o sistema. Nenhum, nada. Eu tenho tido a sorte de ter financiamento europeu que dá alguma margem de manobra. As instituições não querem ter pessoas que falem contra a instituição. É preciso ter uma situação muito particular para que possas fazer barulho. E uma conjunção muito particular de circunstâncias.
S.: A propósito desse papel social da ciência. Vi que coordenaste um programa no Instituto de Gulbenkian dirigido a estudantes dos PALOP, que me parece contemplar uma noção da ciência como um elevador social. Mas perante este cenário que descreves da ciência, completamente esmagada pela precariedade, corremos o risco de perder esse efeito, não? Só quem vai para a ciência é quem já tem uma certa condição e um certo conforto.
Isso é uma realidade. Houve alguns alunos desse programa, que era destinado a estudantes dos PALOP, que me disseram isso: “Só dá para fazer ciência se tu já fores rico”. Porque é tão instável, nunca sabes se vais receber ou não financiamento, as bolsas acabam, depois não há capacidade de pagar e por aí fora. Ou tens capacidade financeira independente, ou é mesmo muito difícil fazer ciência. No caso deste doutoramento, havia alguns que vinham de situações em que a bolsa não servia apenas para os financiar, como por vezes servia para financiar a família toda. De repente eles eram a pessoa que tinha algo fixo e que recebia uma bolsa todos os meses e isso deve-nos fazer pensar.
Mas há aqui dois lados importantes. Uma parte é que a educação é o maior elevador social que temos, não tenhamos dúvidas disso. Portanto, a educação é sempre válida e a boa educação é sempre boa. No caso da ciência, e pensando em algo assim tendo como foco os PALOP há outro lado completamente diferente. Eu acho que os países se tornam verdadeiramente independentes quando fazem a sua própria investigação, quando descobrem o que querem descobrir, quando têm capacidade para isso. E há muito colonialismo científico, mesmo cá em Portugal. Há instituições que são parasitas de instituições em países de desenvolvimento. Vão lá, extraem os dados, sequenciam a biodiversidade, ou seja o que for, e depois publicam os artigos cá. E o que nós queríamos fazer com o programa era inverter completamente este sistema.
O sistema, neste momento, é completamente top-down. Há os nossos professores, os nossos investigadores bem sucedidos e estabelecidos que decidem quem aceitam como estudante. Isso cria uma ligação hierárquica muito forte, e estes programas doutorais (não só para os PALOP mas aquele em que eu me inseri também) eram completamente o contrário. Aqui dava-se a bolsa ao estudante e ele escolhia para onde queria ir. Tendo o dinheiro, podia pensar no projeto. Isto foi uma inversão completa do sistema, e foi profundamente radical na altura. E esta ideia de que nós vamos fazer um programa de doutoramento, mas vamos escolher os alunos independentemente das notas, das médias, e do senhor professor achar que dava um bom assistente, é revolucionária.
S.: Há uma frase que tu escreves num dos artigos sobre o tema, não me recordo se sobre o teu doutoramento ou o programa que coordenaste, mas que me parece aplicar-se a ambos, em que dizes algo como: “Mesmo que falhássemos, já estávamos a falhar tão alto que era um sucesso”.
Exactamente. Eu nem acho que o programa nos tenha selecionado bem, eu acho é que termos passado pelo programa criou uma certa confiança e capacidade. De repente a nossa fasquia mudou. Davam-nos a responsabilidade e a confiança, e isso deu resultados incríveis. Não me lembro de nada que tenha sido feito em Portugal com este tipo de impacto, quer a nível de atração de financiamento, ou formação de líderes cientificos. Foi toda uma geração incentivada por ter havido uma confiança brutal nas suas capacidades e isto parece uma coisa pequenina, simples.
Mesmo do ponto de vista político, se pensarmos, isto é incrível, e é o oposto do que temos visto do discurso do Chega. Porque este discurso baseia-se na ideia de competição, de que não chega para todos, do medo da mudança, do conservadorismo. As pessoas que votam no Chega querem Portugal dos anos 40, e eu percebo isto, porque a mudança é difícil. Como dizia o José Gil, é o medo de existir que faz com que aceitemos uma figura autoritária que nos diga como fazer as coisas. E se ninguém nos diz que somos capazes, se ninguém nos diz que conseguimos almejar a muito mais, nós acabamos por acreditar que de facto estamos a competir com os imigrantes que vêm de uma pobreza extrema. É mesmo um medo tão grande que nós não somos capazes de pensar que temos espaço para crescer muito mais e para ajudar os outros. E que essa cultura de medo seja a cultura que temos vindo a fomentar, mesmo nos media, mesmo que os sistemas sejam complexos, parece-me que é uma das variáveis principais. Esmagamos as pessoas pelo medo — os cientistas, os artistas, os jornalistas. Com medo de perder o ordenado, da mudança na sociedade, de tudo. E a cultura do medo é muito difícil de desmantelar.
(Shifter)