Segunda semana da COP28. Os dias arrastam-se, longos, invariavelmente quentes na sua procissão de talks e declarações. Numa das principais avenidas da Blue Zone – a zona do gigantesco recinto onde pavilhões de países, empresas e ONGs competem por atenção – um pequeno protesto atrai o público. Não é todos os dias que se presencia um protesto autorizado no Dubai. Na linha da frente reconheço um ativista que discursara nas mesmas circunstâncias durante a COP27 no Egipto.
Ainda não parei de pensar nele desde que voltei, pela brutalidade do que relata, mas ainda mais por essa brutalidade ser ignorada ao ponto de ter de a repetir ano após ano, cimeira após cimeira. No fundo, esta é a sina de ativistas, cientistas e comunidades por todo o mundo: repetir os horrores que os países ricos ainda têm o privilégio de ignorar.
O protesto dispersa pouco depois de começar, não vá alguém ganhar o gosto pela liberdade num país onde a liberdade é um bem comercial, proporcional ao net worth. A relação promíscua entre poder e capital é especialmente palpável nesta COP28, cuja presidência foi entregue a Sultan al Jaber, Ministro da Indústria e de Tecnologias Avançadas dos Emirados Árabes Unidos, que acumula ainda os cargos de CEO da Abu Dhabi National Oil Company, uma das maiores empresas petrolíferas do mundo, da Masdar empresa dedicada a energias renováveis e mais uns quantos cargos de semelhante proeminência. Não tentem competir com o Linkedin deste homem.
A escolha de Sultan al Jaber não se revela apenas ilógica mas premonitória. Antes do início da cimeira, uma investigação do Politico revelava a intenção de utilizar a mesma como um veículo para a presidência reunir com chefes de Estado e representantes de empresas ligados à exploração de combustíveis fósseis, gás natural e indústria petroquímica, estando a ADNOC em negociações para adquirir a brasileira Braskem, a austríaca OMV ou a holandesa OCI NV, estratégia reforçada pelo CEO, que recentemente fechou um acordo de 2$ mil milhões para expandir operações de offshore drilling, e afirmou no final da cimeira pretender continuar a expandir a extração de combustíveis fósseis durante os próximos anos. Esta posição não é surpreendente tendo em conta que num evento online, a 21 de novembro, Sultan al Jaber afirmou não existirem provas científicas para a necessidade de abandonar o uso de combustíveis fósseis e que fazê-lo mandaria o mundo de volta para as cavernas. Um argumento comum a CEOs de petrolíferas e familiares negacionistas com zero conhecimento científico em qualquer jantar de Natal.
Talvez por esta escolha de casting, a COP deste ano tenha sido a edição com mais lobistas de empresas fósseis – mais de 2000, mais que o número de representantes de todos os países e 7x mais que todos os representantes indígenas, dando à cimeira uma vibe de team building onde CEOs vão ensaiar small talk e partilhar modelos de jatos privados. Não fossem os climate clocks espalhados pelo recinto contarem menos de 6 anos para limitar o aumento da temperatura mundial a 1.5º, até me questionaria se há mesmo urgência em estarmos ali. A maioria dos presentes parecem mais preocupados com protocolo corporativo e em serem fotografados do que em realmente contribuir para a solução efetiva de problemas.
Todo o contexto em que ocorre a cimeira parece propício à distração. O recinto, como tudo no Dubai, assemelha-se a um render; de uma artificialidade monumental que decerto impressiona quem gosta de árvores bem aparadas. Milhares de pessoas percorrem a sua rede labiríntica de pavilhões como se estes fossem pit stops – 30 segundos para um aperto de mão aqui, antes de ir discursar durante 5 minutos ali e mais uma declaração de 2 minutos acolá – as talks enchem e esvaziam como se as comitivas fossem um fluxo sanguíneo dentro desta quimera corporativa. Tudo isto é suportado pela exploração – não lhe vou chamar trabalho – de trabalhadores migrantes, que constituem 90% da força de trabalho privada do país e que segundo um relatório da organização FairSquare foram submetidos a abusos laborais ainda durante a preparação da cimeira. Não que esperasse diferente de uma nação onde a ditadura permite ao mercado livre fazer aquilo que ele melhor faz – explorar capital humano para lucro.
Mas talvez o erro esteja na minha própria formulação. O objetivo da COP não é contribuir para a transição energética; é assegurar que esta só acontece na medida em que é financeiramente vantajosa. O termo “climate finance” paira omnipresente em todas as talks e discursos, justifica a discrepância de investimento na transição energética do Sul Global e particularmente de nações insulares, que dependentes de quantias extremamente reduzidas para atingirem neutralidade carbónica e independência energética, são rotuladas como investimentos de risco. Não interessa que segundo o relatório de 2023 do IPCC – Intergovernmental Panel on Climate Change criado pelas Nações Unidas – a legislação atual nos coloque no caminho de um aumento de temperatura mundial de 3.2º, que anualmente 7$ biliões de dinheiro público sejam injetados em petrolíferas, que a cada ano que adiamos a neutralidade carbónica esta se torne mais cara, sendo necessários uns módicos quase 300$ biliões até 2050 para evitar perdas na ordem dos 2$ mil biliões em danos num cenário de Business As Usual. Segundo o mesmo relatório do IPCC existe capital mundial suficiente para financiar a transição, que é impedida por barreiras à redireção do investimento. Entramos no campo dos números que não fazem sentido e dos eufemismos para dizer uma coisa: estamos a arriscar o nosso futuro, o das gerações vindouras e de todos os seres vivos no planeta para proteger os investimentos e o lucro de uma minoria, enquanto dizemos aos países mais afetados para serem resilientes.
Resiliência, a palavra que mais escutei nesta cimeira ou talvez aquela que mais me marcou pela hipocrisia que lhe encontro. O termo, promiscuamente aplicado a qualquer das nações mais afetadas pelas alterações climáticas ou em maior dificuldade em financiar a sua transição energética, torna-se cruelmente irónico tendo em conta que a maioria destes países quase todos do Sul Global nunca foram senão resilientes. Resilientes perante séculos de colonialismo, genocídio, exploração extrativista dos seus recursos e consequente ecocídio. Resiliência que lhes é agora pedida pelos países responsáveis não só pelas alterações climáticas, que os afetam desproporcionalmente, mas também responsáveis pelas dificuldades económicas e pelo gatekeeping de financiamento necessário.
Já que falamos de gatekeeping podemos abordar uma das “conquistas” desta cimeira no que diz respeito ao fundo de Loss & Damage, aquele aprovado na COP27. Segundo a Loss and Damage Collaboration são necessários pelo menos 400$ biliões em financiamento anual para a mitigação do impacto das alterações climáticas nos territórios mais vulneráveis às mesmas. No final da COP28 estavam reunidos 700$ milhões, uns impressionantes 0.2% do financiamento necessário, pouco mais que os salários anuais de 3 famosos jogadores de futebol. Parabéns aos envolvidos.
Perante este claro desequilíbrio de esforços, parece-me inevitável afirmar que uma transição energética justa, em que ninguém é deixado para trás, implica o fim do egocentrismo dos países ricos em volta do seu próprio desenvolvimento infinito, em prol de igualar a balança com o resto do mundo. Implica a mudança de uma transição energética inserida no mesmo modelo económico capitalista que causou as alterações climáticas para um modelo económico em que esse lucro histórico é compulsivamente e obrigatoriamente utilizado para compensar o impacto das alterações climáticas nas zonas do planeta que até agora suportaram a crescente riqueza de territórios que não os seus. Investir não porque trará mais valias económicas aos investidores, mas porque é o correto a fazer. Investir sem retorno.
A outra grande “conquista” desta COP foi a Global Renewables and Energy Efficiency Pledge que promete triplicar a produção de energia renovável e duplicar a eficiência energética até 2030 de modo a cumprir com as metas necessárias para manter o aumento mundial de temperatura abaixo dos 1.5º. Uma promessa aparentemente positiva se não refletirmos nas razões pelas quais é necessária – primeiro, porque continuamos a investir em novas explorações de combustíveis fósseis, aumentando as emissões de CO2 de ano para ano e portanto tornando as metas cada vez mais difíceis de cumprir; segundo, porque recusamos considerar uma mudança de paradigma de consumo, que decresça substancialmente a nossa necessidade de produção de energia e gasto de recursos. Se calhar até precisamos de falar sobre aquele termo tabu que arrepia até os mais progressistas – decrescimento *pausa para choque* – porque não existe transição energética capaz de sustentar uma economia de crescimento infinito (e portanto em transição infinita), onde a obsolescência planeada obriga à criação e compra de sucessivos modelos tecnológicos, onde a obsessão por novidade obriga à produção de várias coleções de fast fashion por ano e onde o modelo individualista de consumo nos tenta convencer que é possível alimentar uma frota mundial de carros e SUVs elétricos privados, em vez de privilegiar o investimento em redes de transporte público e mobilidade suave. Mesmo que todo o Sul Global venda os seus territórios à exploração de lítio e outros minerais preciosos – um pitch constantemente escutado nesta COP28 – estes continuarão a ser um recurso não renovável, tal como os combustíveis fósseis. O nosso sistema económico megalómano é a verdadeira fonte de insustentabilidade.
O texto final desta COP traduz essa falta de consciência. Ainda que, pela primeira vez, afirme a importância de abandonar o uso de combustíveis fósseis (só foram precisas 28 cimeiras) a linguagem ambígua não determina um deadline ou legislação. Nada vinculativo. O foco é divergido para as tecnologias de captura e créditos de carbono, sendo a primeira uma tecnologia emergente e ainda altamente ineficaz, sem garantia de que alguma vez o será, e a segunda mais semelhante a um esquema de fraude do que a uma alternativa. Dispensam-se as estratégias cientificamente provadas em prol de wishful thinking.
E ainda que tudo indicasse que este seria o desfecho desta COP é impossível ignorar a revolta de cientistas e ativistas por todo o mundo perante a recusa de resolver a maior crise da nossa história com soluções concretas e comprovadas.
Não precisamos de mais promessas, precisamos de justiça e legislação tão definitiva e drástica quanto os impactos das alterações climáticas nos territórios e vidas humanas que não têm poder sobre o seu próprio futuro. Se, segundo o IPCC, o capital necessário existe, precisamos de legislação que derrube as barreiras ao investimento e obrigue a sua aplicação, agora, não quando o lucro dos combustíveis fósseis cair na conta de Sultan al Jaber e companhia e for demasiado tarde. Demasiado tarde para as nações insulares que lentamente se afundam em promessas vagas. Demasiado tarde para as comunidades que neste preciso momento são alvo de genocídios devido à nossa incapacidade de alterar os sistemas opressores que as privam de humanidade. Demasiado tarde para as crianças, como a ativista Licypriya Kangujam que com 12 anos invadiu a UN High Level Plenary Session para protestar pelo seu futuro, acabando detida e expulsa da COP28. Demasiado tarde para Farooq Tariq e para os camponeses da sua comunidade , sobre os quais gostaria de ouvir histórias felizes.
Como estamos, no próximo ano ouvirei as mesmas.
(Shifter)