Desde há um mês que os palestinianos estão frequentemente sem acesso a comunicações, em consequência direta ou indireta dos bombardeamentos levados a cabo pelo exército de Israel. Mas a história não começou no dia 7 de Outubro e as falhas de conexão não são apenas temporária.
Dezassete dias depois dos ataques levados a cabo pelo Hamas contra o Estado de Israel, a 7 de Outubro, António Guterres, Secretário-Geral das Nações Unidas, dizia que aquilo a que assistíamos “não acontecerá no vácuo”, lembrando os “56 anos de ocupação sufocante” a que os palestinianos têm sido sujeitos. As reações que se seguiram foram uma espécie de competição de moral histórica — entre os que preenchiam este vácuo com o vasto role de resoluções das Nações Unidas ignoradas por Israel, e os que afirmavam que nada se podia qualificar como precedente. Fruto do espírito do tempo, a potencial densidade da metáfora foi substituída por uma interpretação dicotómica da realidade, como se a retórica se pudesse isolar da realidade para que aponta ou pudesse, simplesmente, servir como elemento de legitimação ou rejeição dessa realidade.
Fora das dicotomias, da polarização reinante nas redes sociais, entre bons e maus, e distante da ideia simplista de que contextualizar é um sinónimo de legitimar – e de que perceber como vivem os milhões de palestinianos ao dia de hoje é o mesmo que justificar as ações do 7 de Outubro –, a expressão de Guterres deve guiar-nos numa direção diferente, interpelando-nos a compreender o substrato de onde brotam tais acontecimentos. É inegável que Israel tem, nas últimas décadas, aprisionado o povo palestiniano, quer na zona da Cisjordânia (West Bank), quer na zona da faixa de Gaza, epicentro do conflito actual. Como essa prisão se tornou “sufocante”, e o nível de sufoco a que estão sujeitas as cercas de cinco milhões de pessoas que habitaram os territórios palestino, é uma questão bem mais complexa, com respostas caucionárias, que mostram como nas últimas décadas o desenvolvimento tecnológico e infraestrutural não só acentuou ainda mais a segregação física entre pessoas, como privou os palestinianos de armas políticas e sociais que um pouco por todo o mundo fomos dando por adquiridas. Dando-se, se não um genocídio, um politícidio, na negação ao povo das armas que lhes permitiam adquirir ou construir uma representação política válida.
O Iron Dome – poderoso sistema de defesa de Israel –, a artilharia de longo alcance, o armamento e fardamento sofisticado, em comparação com os mísseis feitos com tubos reapropriados e guerrilheiros vestidos à civil, ilustram bem discrepância do ponto de vista tecnológico. Se no caso russo se chegou a falar de uma splinternet – uma internet fechada — como forma do executivo de Putin acicatar o controlo sobre a sua população, neste caso a ameaça vai no sentido contrário, denotando as relações de poder que definem a realidade local. Desde o mês passado que os palestinianos estão frequentemente sem acesso a comunicações, em consequência direta ou indireta dos bombardeamentos levados a cabo pelo exército israelita. Por um lado, esta inoperância revela a fragilidade das infraestruturas, por outro, mostra como o controlo sobre tecnologia é uma arma fortíssima nos conflitos contemporâneos; com implicações em cascata, que inundam por completo todo o campo de batalha: desde as ruas do norte de Gaza, até aos espaços de discussão pública que, um pouco por todo o mundo, vivem da reação ao que de lá se vai sabendo. Se a desinformação tem sido uma das faces mais visíveis da chamada digitalização da guerra, no terreno as implicações infraestruturais são mais pervasivas, ainda que com consequência mais discretas, que faz com que muitas vezes fiquem fora dos radares.
Para além da relação colonial espacial, que se expressa na disputa de espaço e se revela nos mapas cronologicamente ordenados onde a diminuição do território palestino se torna evidente, a imposição do poder da força segregadora dos povos impõe-se também na vertical. Eyal Weizman, arquitecto israelita com ascendência britânica, autor do livro Hollow Land, explica como na sobreposição de camadas discretas, de controlo sobre infraestruturas, o sistema tributário e até imposições regulamentares, a relação entre Israel e a Palestina se tornou num apartheid vertical. Um cenário em que a repressão não se expressa necessariamente na conquista de espaço físico, mas no sequestro de outras formas de poder e organização. Que, como Weizman escreve, no prefácio do livro, que está publicado online, nem sempre é fácil de entender na sua totalidade, uma vez que “cada camada é apresentada como uma solução casual, muitas vezes meramente funcional, para um problema distinto. Um remendo sobre remendo, implementado fase a fase.”
“Uma camada assegura que o topo das colinas é confiscado pelo Estado para a construção de colonatos; outra anexa terras ao longo das estradas que ligam esses colonatos (para sua segurança); outra restringe a construção (apenas dentro e à volta de aldeias e bairros palestinianos) em nome de regulamentos ambientais, pelo fim da poluição atmosférica, as áreas verdes e reservas naturais, ou porque os militares precisam de áreas de treino como armamento real (sempre junto a locais palestinianos), ou porque existem sítios arqueológicos sob essas áreas palestinianas, ou, mais eficazmente, para restringir o acesso à água subterrânea. É a percepção de separação entre estas camadas que torna a política do apartheid vertical tão eficaz e resistente, e mais ainda, um modelo atrativo para outros países que procuram uma forma de controlo da população”. Neste ensaio, não teremos a ambição de reconstituir o edifício colonial israelita, mas de nos debruçarmos sobre uma camada concreta, que nos diz tanto a todos os que habitamos este tempo, a da comunicação.
Fala da Palestina?
Se estivermos em qualquer parte do mundo e quisermos fazer uma chamada para Portugal, todos mais ou menos instintivamente sabemos que tudo o que temos a fazer é introduzir o prefixo +351. Este pequeno conjunto numérico, que serve como nome de marcas, referência em músicas de hip hop e pouco mais, é visto, nesta Europa de fronteiras fixas e relações diplomáticas cordiais como um dado adquirido. Mas a verdade é que não é assim em todos os casos, e a história do indicativo da Palestina, da criação de condições para o tornar operacional, é uma óptima ilustração das relações entre os países, e da importância da comunicação na tão badalada autodeterminação.
Corria o ano de 1995, em Portugal, e a TMN revolucionava o mercado com o lançamento do icónico Mimo e a estreia dos planos pré-pagos, a Telecel estreava um dos anúncios que vingaria na memória dos portugueses durante todos estes anos, enquanto que na Palestina apenas 3 em cada 100 pessoas dispunha de acesso a um telefone. Os palestinianos não dispunham de infraestruturas de acesso ou sequer uma operadora de telecomunicações em função, e os pedidos para aceder à linha telefónica, feitos às operadoras israelitas com responsabilidades do local, ficavam condenados a tempos de espera impraticáveis, chegando a atingir a marca dos 10 anos. Das cerca de 400 vilas reconhecidas da Palestina, no mesmo ano, apenas 80 tinham acesso a serviços telefónicos. Na sua maioria, como consequência colateral da ocupação, graças a serviços israelitas, com tudo o que isso implica. Reconhecendo a importância política do desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação, foi o próprio Yasser Arafat, icónico líder da autoridade palestiniana e antigo presidente da Organização para a Libertação da Palestina, que encetou esforços pela criação da Paltel, a empresa estatal que até hoje se encarrega dos serviços na área. Mas o caminho gizado para o desenvolvimento do sector não foi minimamente linear.
O plano de Arafat – à data líder da autoridade Palestiniana – para estabelecer a Empresa de Telecomunicações Palestiniana passava por recuperar o tecido de ligações telefónicas que, à data, era uma mistura composta por pedaços, não só colocados pelos israelitas, como por jordanos, egípcios e britânicos – um autêntico reflexo das dinâmicas de gestão daquele território. Mas os cabos e postes em decadência não eram o único problema que tinham de enfrentar — e para o qual foram destinados 65 milhões de dólares, resultantes da venda de acções da empresa. Nos territórios disputados, também as posições quanto às preferências para a colocação de material de transmissão foram alvo de discórdia — sobretudo na sinuosa Cisjordânia. E, por cima de tudo isso, ainda que a sua capacidade de criar conexões locais conseguisse uma densidade de oferta aceitável, tudo o que fossem comunicações de longa distância estaria dependente do serviço da israelita Bezeq. Não só por falta de material técnico, mas por grande pressão política, e o controlo aéreo até sobre a emissão de frequências. A disputa política na área das telecomunicações era de tal ordem nevrálgica, que os israelitas viam na tal emissão de um código telefónico, um sinal de soberania que não estavam dispostos a conceder à Palestina.
Só cerca de quatro anos depois da fundação da Paltel, em 1999, a União Internacional das Telecomunicações decidiu, discreta e unilateralmente, reservar o +970 como indicativo para os territórios palestinianos, quer em Gaza, quer na Cisjordânia, com a condições de organizarem o serviço telefónico até que pudesse ser atribuído. Não sem a oposição de Israel, que se queixou de uma potencial violação dos acordos de Oslo que determinava que questões desta natureza tinham de ser decididas por ambas as partes. Uma oposição que na altura se traduziu num reforço da posição de poder. Citado pelo New York Times, Izzy Tapoohi, o presidente do conselho de administração da Bezeq, empresa estatal israelita, era peremptório, negando a sua cooperação e apontando para a dependência dos palestinianos que “continuarão a ter de passar por nós”; outro porta-voz da empresa dizia: “Eles, palestinianos, dependem da infraestrutura que lhes fornecermos.”
E se esta história pode parecer de um tempo já distante, não é. Se 30 anos com lançamentos de telemóveis em catadupa, novos modelos e novos hypes para nos entretermos este momento parecem longínquo, nesta história não assinalam mais do que um ponto (e não o primeiro) de uma linha que se prolonga até hoje. É que mesmo com o acelerar do desenvolvimento na área das comunicações – alguém se lembra de quando funcionavam em 2G? –, o ritmo da sua implementação nestes territórios ocupados nunca foi suficiente para acertar o passo, e as questões foram-se repetindo e arrastando ao longo das décadas. De tal modo que o 2G continua ser o único serviço disponível em partes sobretudo de Gaza.
7 megabites por segundo
Os acordos de Oslo, que procuravam estabelecer as bases de uma relação entre Israel e a Palestina, delineando algumas mudanças estruturais importantes e como deviam ser feitas, dava a Israel o domínio sobre a gestão de todas as frequências: rádio, TV e celular. Era a partir desse pressuposto que os palestinianos, representados num comité chamado Joint Techninal Committee, deviam negociar as suas exigências. O que, em mais de duas décadas, fez com que muito pouco fosse avançando. A exclusão das comunicações foi-se perpetuando à medida que novas tecnologias eram desenvolvida, as pessoas foram-se adaptando como puderam, mas mesmo assim o durante estes perto de 20 anos, o mercado de telecomunicações palestiniano foi-se desenvolvendo.
Um dos marcos assinaláveis é o lançamento da segunda operadora, a Wataniya Mobile – hoje conhecida como Ooredoo Palestine – que dava sinal de uma liberalização do mercado que podia, em tese, acelerar a sua consolidação. Essa operadora emergiu em 2007 como a principal candidata ao fornecimento de 2G/3G nos territórios palestinianos, algo que foi, mais uma vez, constantemente protelado pelo governo israelita. Inicialmente, por mais de dois anos, num processo que se viria a arrastar… durante mais de dez. Só em 2018 os territórios palestinianos da Cisjordânia tiveram implementação da rede 3G, numa altura em que já era relativamente comum mais o recurso a cartões SIM pré-pagos e contrabandeados para dentro das fronteiras, que estabelecendo conexão através das torres de transmissão israelitas (geralmente colocadas para servir os colonatos) ou de outros países próximos os mantinha em contacto. Um contacto controlado – e potencialmente vigiado – por quem lhes negava o acesso, com implicações sociais e económicas.
Por um lado, a opção por cartões pré-pagos e uso da rede israelita só estava ao acesso de alguns, nomeadamente dos que viviam mais próximos das fronteiras com Israel ou de colonatos servidos por telecomunicações. Por outro, a autoridade palestiniana considerava a opção ilegal por minar os planos de criar uma rede de comunicação soberana. Apesar de todos os entraves, num relatório de 2012 da autoridade palestiniana citado num artigo de Nur Arafeh, Wassim F. Abdullah, da AlShabaka (The Palestinan Policy Network) ficamos a saber que o sector das telecomunicações representava à data 5.6% do P.I.B. Contudo, a concorrência desleal das operadoras israelitas terá provocado perdas de milhões de potenciais receitas tanto à empresa do grupo estatal, Paltel, como à Ooredoo, um dos maiores investimentos estrangeiros na economia palestiniana, impedindo o seu desenvolvimento.
Atrasos tecnológicos que provocam atrasos sociais e vice-versa. Como se refere num artigo da Visão, do jornalista Nuno Aguiar que traça um interessante retrato da economia dos territórios palestinianos, Richard Kozul-Wright, diretor para globalização e estratégias de desenvolvimento da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento, os últimos 16 anos em Gaza têm sido praticamente de retrocessos – desde as eleições ganhas pelo Hamas e a guerra com a Fatah que se seguiu.
Como afirma o relatório do Banco Mundial elaborado em 2021, a economia palestiniana tinha cerca de 1/4 da sua população desempregada (17% na Cisjordânia e 45% em Gaza), com uma baixa representação das mulheres no mercado de trabalho, algo que se podia colmatar com uma transformação digital dos territórios que permitisse o crescimento económico. Segundo cálculos, cada emprego gerado no sector das TIC gera em média três empregos noutros sectores. Mas para se ter uma ideia da realidade concreta em que se vive na Palestina, ainda que a penetração de internet seja hoje mais considerável – a velocidade média situa-se nos 7,1 mbits/s, menos de metade dos países congéneres; a penetração de 3G é de apenas 63% e a de 4G é de 0%. Uma lentidão que se reflecte no desenvolvimento social e político, algo que é reconhecido internacionalmente.
Apesar de no meio do deserto económico, quase por milagre, Gaza ainda se mantendo no mapa da cena das startups, sobretudo graças a investimento de empresas como a Meta ou a Alphabet, claro está, sem poder comandar e reforçar os seus próprios destinos. Ainda em Julho de 2022, Joe Biden, Presidente dos EUA, numa conferência de imprensa que ficou marcada como um passo nas conturbadas relações entre os EUA e a Palestina, se encontrou com o presidente da Autoridade Palestiniana, Mahmoud Abbas, e mencionou que Israel devia facilitar o acesso dos palestinianos ao 4G. Mas as palavras parecem ter feito pouco eco. Tal como as do relatório do Conselho da União Europeia, de Outubro do mesmo ano, que mencionava a importância de se avançar com as promessas que tinham ficado gizadas num acordo de 2019.
Embora os israelitas se digam dispostos a negociar, representantes da autoridade palestiniana repetam reiteradamente as críticas à estratégia de negociação levada a cabo por estes, que ora repetiam propostas que já tinham sido cabalmente rejeitadas, ora faziam promessas sem qualquer consequência prática. A título de exemplo, o sector palestiniano requeria atualmente 90 megahertz para operar na zona da Cisjordânia e poder não só implementar serviços 4G como também ambicionar lançar o 5G, mas Israel só aceitou ceder 35 megahertz alegando que não havia mais espectro disponível (por estar ocupado pelas suas operadoras). E as limitações não se ficam por aí. Na denominada Área C, a criação de infraestrutura é proibida por Israel e, em Gaza, está suspensa a entrada de material essencial à criação de comunicações acima de 2G. Problemas que se prolongam há anos.
Em mensagens trocadas com a revista Wired, Husam Mekdad, engenheiro de telecomunicações sedeado no sul de Gaza, fazia um ponto da situação que se vive no local: “Israel controla as telecomunicações e a internet em Gaza”, referindo que as operadoras locais, oferecendo rede 2G acabavam rapidamente congestionadas na ausência do serviço aquando dos sucessivos cortes. É neste cenário que vivem pouco mais de dois milhões de pessoas. E, se neste momento, o principal foco é o conflito que agora decorre, neste ensaio a intenção não é tanto lembrar a importância óbvia da telecomunicações nestes momentos, para as equipas de socorro no local, para a tentativa de restabelecimento de alguma normalidade e para a cobertura jornalística, mas reflectir sobre estes condicionamentos no dia-a-dia dos que lá crescem. E sobre como se isso pode traduzir-se na capacidade de geral de um país se posicionar no denominado xadrez mundial.
17 km, um mundo de distância
Segundo o Google Maps, em linha reta são pouco mais de 15 km que separam Urim do picotado que delimita no mapa a faixa de Gaza. O pequeno kibbutz com cerca de 200 habitantes, que escapou “miraculosamente” dos ataques terroristas do Hamas – apesar de situar no deserto de Negev, muito perto de dois dos kibbutz que foram mais severamente atacados –, pode parecer à partida insignificante no grande esquema das coisas. Mas é nas suas imediações que se situa a Urim SIGINT Base. Uma das principais unidades de recolha de informação pertencente à equivalente israelita à NSA, que em nada fica a dever à congénere norte-americana.
Segundo uma reportagem do Le Monde Diplomatique, é na base de Urim que são interceptados os sinais que chegam dos cabos subaquáticos que provêm a ligação à internet entre Israel e a Europa – servindo muitos outros países do Médio Oriente e Norte de África. É também nessa base operacional que um conjunto considerável de antenas capta os sinais circundantes, dando à inteligência israelita a capacidade para escutar chamadas ou aceder a e-mails, num raio considerável, que pode chegar à Europa. E se estas capacidades desta base são já suficientes para impressionar – a base é uma das maiores unidades do género, com esta dimensão, de que se conhece a dimensão e que se pode observar livremente no Google Maps –, mais interessante neste contexto é perceber como a unidade a que pertence tem sido um fio fundamental no tecido social e económico de Israel.
Um antigo operacional da Unit 8200 – unidade que gere a central de inteligência –, testemunhou na primeira pessoa, em entrevista ao site Middle East Eye a forma como os israelitas conseguem ouvir qualquer conversa telefónica na Cisjordânia e em Gaza. Revelando que esta interceção tanto pode incidir sobre aqueles que se sabem ser politicamente cativos, críticos de Israel e engajados em actividades de resistência, como para descobrir outras pessoas potencialmente comprometidas, para as obrigar a colaborar. Mas que não raras vezes a interceção não obedecia a qualquer critério, sendo inclusive escutadas conversas de cariz sexual que serviriam para chacota entre os operacionais que as escutavam e outros a quem davam acesso.
Ao lado de um dos países com menor penetração de internet, com conexões lentas e com todo o tipo de problemas relacionados com o desenvolvimento tecnológico, Israel é, pelo contrário, um dos países mais adaptados à economia global. Situa-se nos primeiros lugares no que toca, por exemplo, ao de capital investido per capita, no número de startups criadas; e a influência do contexto local é, ao contrário do caso Palestiniano – e por razões que devem agora ser óbvias –, um argumento comum para este sucesso.
Israel criou um inteligente complexo militar-económico que fundado na ameaça percebida, e no persistente controlo exercido sobre o território palestiniano se tornou num ambiental experimental, no “The Palestine Laboratory”. Este é, de resto, o título de um livro que oferece um retrato alargado de como desta relação entre Israel e a Palestina serve de palco de testes para uma panóplia de tecnologias de ponta – desde drones, a sistemas de videovigilância, passando por tecnologias de espionagem como o famigerado Pegasus. A Unit 8200 [Unidade 8200] é uma pequena peça deste puzzle, mas uma peça fácil de encaixar no nosso mapa mental quotidiano.
Unit 8200
“Lembro-me perfeitamente que, antes de ser recrutado, senti que tinha muita sorte porque este trabalho era livre de dilemas morais. Porque o trabalho era tornar tudo mais simples. Era suposto minimizarmos os feridos e mortos e combatermos o terrorismo” – quem o diz é “A”, numa entrevista concedida ao The Guardian, em 2014. O emprego a que se refere é uma posição na Unit 8200. Frequentemente citada em artigos sobre empreendedorismo, como um dos ingredientes da estratégia israelita para preparar os seus jovens cidadãos para o universo das startups, que tem sido um motor fundamental de desenvolvimento de Israel, a unidade é promovida como uma incubadora de pessoas e empresas na área da cibersegurança e inteligência. Mas ao contrário da expectativa de “A” não sem uma grande carga de dilemas morais associados – nomeadamente quanto ao seu papel na relação com os palestinianos.
Na entrevista, “A” e 3 outros refuseniks que o acompanhavam naquele momento de conversa eram entrevistados por serem signatários de uma carta endereçada a Benjamin Netanyahu, Primeiro-Ministro de Israel, em que renunciavam à colaboração no aparato de controlo tecnológico nos territórios ocupados ao serviço desta famosa unidade. Na conversa, corroboram o cenário de violação absoluta da privacidade de qualquer pessoa nos ditos territórios, revelando a falta de qualquer controlo processual, de noção sobre o conflito e a iminente sensação de que os “palestinianos não têm direitos políticos”. E sugerem que parte do que a Israeli Defense Force faz naquela unidade não merece o título de defesa por ser mais sobre controlo do que sobre minimização dos riscos. Um tipo de recolha de informação mais característico de ditaduras – dão o exemplo da ditadura militar argentina – do que de democracias, e sobre um povo e um espaço que não são da sua jurisdição. Mas desengane-se quem possa pensar que todos percecionam os dilemas morais da mesma maneira. Ou até que a Unit 8200 só serve para espiar palestinianos.
Na verdade, a unidade é muito mais diversa, bem como a amplitude do que por lá se faz. O carácter militar mistura-se por completo com o espírito empreendedor. E os jovens recrutas tanto são encarregues de missões altamente complexas e delicadas, como são treinados numa diversidade de tecnologias. Para se perceber esta amplitude, vale a pena citar por exemplo o Wix, plataforma de criação de websites que, sem que tenha nada aparentemente ligado com o universo da cibersegurança, terá sido criado nesta unidade.
Idan Tendler, num artigo escrito em 2015 na publicação Techcrunch, é outro bom exemplo. Escrevendo a pretexto da seleção da sua empresa para um cotado ranking, Tendler, falou aberta e orgulhosamente sobre o impacto da unidade na sua formação e na sua preparação. No artigo descreve a unidade como uma espécie de fornecedora de software para a IDF que trabalha directamente o seu cliente (a inteligência israelita) com uma enorme clareza e alguma leveza: “Éramos um grupo de miúdos de 18 anos que, em poucos meses, estaria a liderar operações complexas de inteligência no equivalente israelita à NSA. Nesse curso intenso, aprendemos a produzir inteligência, usar técnicas de SIGINT, técnicas sofisticadas de mineração de dados e a conceber tecnologia altamente avançada.”
Também Nadav Zafrir, antigo comandante da Unidade e agora fundador de uma empresa de incubação e capital de risco, numa entrevista dada ao site israelita Globes, fala “sem cinismo” da sua perceção sobre a importância económica desta estratégia, de como a IDF se tornou num catalisador da economia israelita. E de como a Unit 8200 acaba por ser primordial na formação de profissionais para um dos sectores mais bem remunerados actualmente. Zafrir compara os alumni da Unit 8200 aos estudantes na Noruega ou no Texas, dizendo que no caso israelita, o facto de operar num ambiente militar permite uma progressão muito mais rápida dos formandos obrigando-os a desenvolver mais rápido o seu sentido de responsabilidade, preparando-os para o ambiente profissional. E o papel da tecnologia de cibervigilância e inteligência em Israel não se esgota nesta dimensão.
Uma arma diplomática
A capacidade de Israel desenvolver tecnologia de vigilância do mais alto nível, como se provou, não é infalível. Pelo menos no terreno. O ataque do dia 7 de Outubro, segundo reporta o New York Times, podia ter sido previsto, precisamente, por uma equipa da Unit 8200, que, encarregue de controlar essa rede de comunicações, terá abandonado a missão um ano antes por a considerar irrelevante. “A força militar mais poderosa do médio oriente falhara”, “apesar das suas proezas no campo da espionagem” fora ferida por ataques de homens armados altamente treinados mas com muito menos capacidades.
Segundo oficiais ouvidos pelo jornal, o exército israelita considerava que conseguiria controlar o Hamas através de uma “extensa rede de espiões humanos” – provavelmente indivíduos comprometidos a partir de escutas telefónicas – e outros métodos de vigilância sofisticada, que conteriam os ataques, para além do incontornável Iron Dome. Na mesma peça, lê-se que em quatro sucessivos governos, Israel considerara sempre que esmagar o Hamas custaria demasiadas vidas e isso traria consequências negativas para a reputação do país.
Uma reputação onde, deve dizer-se, a capacidade de Israel desenvolver tecnologia de vigilância se vê vindicada. Como se conta no já citado livro The Palestine Laboratory, o papel das empresas de espionagem, nomeadamente a jóia da coroa, NSO – criadora do spyware Pegasus e também com fortes ligações à Unit 8200 –, não é só militar, nem económico, mas também diplomático.
São vários os exemplos citados pelo livro em que a coincidência entre a melhoria das relações diplomáticas e o uso do Pegasus em violação dos direitos dos cidadãos se torna demasiado óbvia. Desde o Togo, a Hungria, até aos Emirados Árabes Unidos e à Índia, passando pelo Ruanda, Azerbeijão. Em todas estas relações, a tecnologia de cibervigilância serviu como moeda de troca de uma melhoria reputacional. Equipando regimes que perseguem os seus cidadãos, em casos tão perversos como no Togo, onde os activistas nunca imaginariam que o governo dispusesse de tais ferramentas, até perceberam que as contratavam a outro país.
Citado no mesmo livro, o jornalista do jornal israelita ex-Haaretz, com trabalho sobre o tema, Amitai Ziv, explica até onde pode ir a materialização dessas relações: “Quando Israel vende ferramentas de cibervigilância para algum país africano, eles asseguram os votos nas Nações Unidas.” e assumindo que é pelas normas do direito internacional que se devem reger as principais disputas mundiais, percebe-se a relevância da transação. E a forma como a expressão política do estado de Israel – o seu sujeito político, se assim quisermos chamar – se alavanca na relação altamente opressiva que mantém com a Palestina e numa constante militarização das relações.
Não só a privação de tecnologia aos territórios da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, administrados pela Palestina, dificulta o seu desenvolvimento, como o ambiente criado se torna num importante catalisador social e numa forte arma diplomática. Depois da vigilância israelita sobre os palestinianos não ter resultado na prevenção do ataque terrorista, ou na sua contenção rápida evitando as casualidades, perante a resposta israelita desproporcional que tem feito escalar um conflito absolutamente desigual com objectivos militares confusos, será interessante observar a a evolução do mantra securitário. Quanto tempo mais Israel manterá parte da sua reputação política graças ao fornecimento de tecnologia de ponta de cariz vigilante a atores que procuram usar tecnologia muitas vezes em violação de direitos humanos? Quanto tempo permanecerá um povo forçadamente desligado do mundo?
(Sgifter)