O Corpo no Museu: Um Guia para Visitantes

By | 05/10/2023

Existe, na Universidade de Coimbra, uma sala repleta de objetos originários de “países de expressão portuguesa”11 (considerando o período de aquisição das peças, que o museu descreve como “recolhidas na sua maioria durante o séc. XIX”, eu chamar-lhes-ia outra coisa). Visito essa sala em silêncio, na cauda de uma visita guiada composta por um grupo de homens que não só se conhecem uns aos outros como conheceram alguns destes países de expressão portuguesa num ambiente ligeiramente mais tenso —diria até mais bélico— do que aquele que vivemos nesta sala. Em tom jovial, às vezes nostálgico, como que em excursão, o grupo segue o guia pela sala, colocando questões e, muitas vezes, oferecendo as suas próprias respostas sobre esta Exposição do Mundo Português em miniatura. Muitas cerâmicas depois, o grupo detém-se em frente a uma vitrina coberta por um pano negro. “Agora quero mostrar-vos algo diferente,” anuncia o guia, mais ou menos nestas palavras. Entramos no jogo. Aproximamo-nos, e ele afasta o pano numa única golpada, no gesto treinado de quem já desvendou esta vitrina centenas de vezes.

Estou ombro a ombro com os meus colegas de visita, e a sala parece-me subitamente mais exígua. Dentro da vitrina: duas pessoas.

Talvez o guia não pretendesse chocar. Afinal, a exposição de restos mortais humanos em museus é uma absoluta banalidade. O Routledge Handbook of Museums, Heritage, and Death define restos humanos como “os restos corporais de pessoas – as “coisas” deixadas para trás após a morte”. Exemplos claros incluem esqueletos, ossos, cinzas de cremação, múmias, cabeças-troféu, e corpos plastinados (aqueles que por vezes nos visitam em exposições como Body Worlds ou Bodies Revealed). Exemplos menos óbvios podem incluir itens feitos de pele, osso, ou cabelo (incluindo objetivos de joalharia, objetos decorativos, ou ex-votos), e até mesmo próteses, que muitos utilizadores consideram fazer parte dos seus corpos.

Há restos mortais humanos em variadíssimos tipos de coleções museológicas: antropológicas e arqueológicas, médicas, de História e de História Natural. Consoante o seu contexto, podem refletir visões do corpo racializado, do corpo criminoso, do corpo “anormal”. Até em contextos religiosos é difícil evitá-los: entre santos incorruptos, capelas dos ossos, e relicários contendo restos mortais de santos e mártires, Portugal está pejado de seres humanos em redomas de vidro.

Os restos humanos não-europeus são (com possível exceção das relíquias religiosas, cuja quantidade em Portugal estará muito provavelmente próxima de “incontável”) aqueles com os que os visitantes têm mais probabilidade de contactar. São, provavelmente, aqueles em que o leitor pensou quando leu “exposição de restos mortais humanos em museus”, pois há muito que múmias egípcias, múmias peruanas, e “cabeças encolhidas” fazem parte do nosso imaginário. No entanto, a exposição destes restos mortais tem suscitado debates acesos — debates sobre colonialismo e imperialismo, sobre racismo científico, sobre a objetificação do “outro”, e, no limite, sobre quem tem direito a expor o quê de quem.

Em Portugal, estes debates têm decorrido internamente — e até “informalmente”, para citar uma peça do Público. A ICOM Portugal conduziu, em 2021, um inquérito à presença de património proveniente de territórios não-europeus nos museus portugueses. Dos 67 museus que responderam ao inquérito, 52 afirmaram preservar coleções não-europeias; 6 confirmaram possuir restos mortais humanos. Numa reportagem do Expresso de 2023, intitulada “Os Nossos Ossos Deles”, a lista passou a 8 museus.

É provável que o visitante de museus não tenha dado conta deste questionário, ou sequer desta reportagem; em Portugal, o debate sobre “os nossos ossos deles” ainda não chegou ao público em geral. Mas não poderá o visitante que entra nestes espaços museológicos assumir um papel ativo nestas discussões? Não poderá o visitante chamar a si o papel de abordar o Museu — e digo aqui museu com M grande, o Museu enquanto instituição coletiva — com uma perspetiva crítica? Afinal, conhecer os contextos históricos que levaram à aquisição destas “peças” e reconhecer as complexidades éticas inerentes à sua exposição pode ter implicações que vão muito além dos limites das paredes do Museu.

Conversemos, de visitante para visitante.

Dias depois da minha visita ao Museu da Ciência na Universidade de Coimbra, debruço-me sobre a base de dados online em busca das duas pessoas que vi escondidas sob uma cortina. Quero saber quem são, de onde vieram, e como me chegaram — como é que me foi dada esta oportunidade de as ver, estando nós tão distantes no tempo, no espaço, e nas nossas experiências pessoais. Encontro-as descritas2 como “duas múmias expostas numa vitrina fechada, protegida da luz por um tecido preto […] múmia do lado direito, do sexo feminino […] a outra múmia, colocada do lado esquerdo”. O museu chama-lhes ANT.90.10.23— a ambas, à sua vitrina, e ao seu tecido preto. Assim se empacotam duas pessoas para consumo museológico.

Nem é este o seu primeiro empacotamento. O primeiro terá sido algures no século XIX, quando Dimas Filgueira, um português emigrado no Chile, onde trabalhou como bombeiro voluntário, as recolheu e trouxe — ou enviou, quem sabe — para Portugal.3 Estes detalhes retiro de um artigo da antropóloga- arqueóloga María Patrícia Ordoñez Alvarez; não estão presentes no catálogo online, e muito menos na sala onde vi a malfadada vitrina. Pergunto-me se a presença desta informação teria alterado a minha experiência enquanto visitante: se me teria questionado sobre Filgueira e as suas aventuras (como seria a vida de um bombeiro oitocentista?), ou sobre o que leva um bombeiro voluntário a adquirir dois cadáveres como souvenir; ou sobre o porquê de termos duas múmias sul americanas meio expostas, meio escondidas numa sala dedicada aos tais países de expressão portuguesa (grupo que, o leitor atento reparará, não inclui o Chile).

Pergunto-me se teria sido capaz de olhar além das motivações individuais de Filgueira. Afinal, se o interesse em múmias pode ser reflexo de uma curiosidade individual (quiçá semelhante àquela que leva visitantes como eu a visitar estas coleções), também é indubitavelmente produto de contextos marcados pela colonização, imperialismo, e insensibilidade cultural (ou, se quisermos acolchoar esta afirmação, uma sensibilidade cultural diferente).

Um visitante que pretenda abordar o Museu de forma crítica terá sempre de começar por aqui: pelo contexto histórico que permitiu que homens como Filgueiras recheassem a Europa com os cadáveres de outros povos — ou, por outras palavras, com os mortos dos outros.

Vamos até Lisboa. No Museu Arqueológico do Carmo vivem dois indivíduos da comunidade Chancay, um povo sul-americano que não sobreviveu até aos dias de hoje. Numa sala que honra os arqueólogos portugueses, encolhem-se estes dois indivíduos em vitrinas separadas, mãos entrelaçadas sobre os joelhos, em poses que, totalmente descontextualizadas, parecem de uma vulnerabilidade extrema.

Se a visão destes dois indivíduos nesta sala me comoveu, é certo que também inspirou outros escritores e artistas: a jornalista Alexandra Prado Coelho, no Público, descreveu a sua pose “algo tímida […] como quem não quer incomodar e se aperta para dar espaço aos outros”. Descreveu “os fusos de roca e o pedaço de tecido que seguram para todo o sempre entre os braços e o peito, como a coisa mais preciosa que levaram das suas curtas vidas”. A ilustração que acompanha o artigo, de Mónica Cid, demonstra bem a dinâmica de poder que se sente na sala: o indivíduo sul-americano em posição fetal, encolhido na sua vitrina, sob o olhar atento do homem branco (que, neste caso, é o busto esculpido de D. Fernando II, cujos restos mortais estão, por um lado, tragicamente desaparecidos, mas, por outro, não permanentemente expostos ao público).

O artista Denilson Baniwa, convidado por Filipa Cordeiro e Rui Mourão para contribuir para o projeto colaborativo “O Tempo das Huacas”4, que procurou ativar o diálogo em torno da exibição destes dois corpos, também não ficou indiferente à redoma de vidro. Na sua videoperformance, o artista “reencena o próprio dispositivo da caixa de vidro do museu e, assumindo a sua identidade cultural oprimida, coloca-se no lugar dos corpos indígenas em causa, procurando sentir e dar a sentir aquilo com que empatiza, se identifica e com que sofre. Mas fá-lo em tom de denúncia, como uma extensão da sua atividade ativista pelos direitos indígenas.”

Os jovens Chancay5, que se presume terem vivido no século XVI, chegaram a Portugal no século XIX pela mão do Conde de São Januário, que expôs os seus corpos pela primeira vez em 1880s. Disse o próprio, em 1885, que provinham “dos campos arenosos situados ao Norte de Lima, nas imediações dos quais existiam ruínas de antigas povoações indígenas”. Uma vez mais, esta informação não é apresentada ao visitante na sala. Os corpos podem ter-nos chegado no século XIX, mas a decisão de os manter expostos é do século XXI — mais especificamente de 2001, quando as salas do Museu Arqueológico do Carmo assumiram a disposição que têm hoje. Entretanto, essa decisão tem sido reiterada outra e outra vez, sempre que a disposição da sala (que também inclui um sarcófago Egípcio, com múmia) é alterada.

É certo que um museu pode expor objetos com proveniências complicadas sem assinar necessariamente por baixo das dinâmicas que os trouxeram até nós; é certo que não devemos julgar o passado com olhos do presente (que, como tantos dizem, “não se pode apagar a História”). No entanto, é igualmente certo que o presente não se deve reger pelos valores do passado. O Museu — novamente com M grande — pode e deve evoluir. Fica o visitante convidado a refletir sobre se efetivamente o faz, ou se arrasta consigo, inertes, decisões de outros tempos.

Deixemos o duo Chancay repousar como pode no burburinho permanente do Carmo. Vamos ao Porto. Aqui vive, desde 1926, o sacerdote egípcio Pakharu — e que privilégio é sabermos o seu nome, e a sua ocupação.

Pakharu viajou para Portugal, pela primeira vez, em 1926, mas não veio direto do Egipto. Veio da Alemanha, onde durante anos fizera parte das coleções dos Museus de Berlim. Quando Pakharu nos chegou, chegou-nos como enviado de paz, em troca de uma coleção que Portugal havia apreendido à Alemanha durante a Primeira Guerra. Não foi um português que recolheu Pakharu, e talvez seja justo dizer que Portugal nunca quis propriamente adotar este sacerdote — e, no entanto, aqui o temos.

Neste momento, Pakharu não está exposto ao público, mas já o esteve pelo menos três vezes no século XXI. Se há uma mostra da Universidade do Porto, lá vem Pakharu prestigiar o evento, quase como um embaixador do Antigo Egipto na cidade do Porto. (Lembro-me do adágio que o Routledge Handbook of Museums, Heritage, and Death atribui aos museólogos o século XIX, “que um museu sem múmia não era um museu”, e pergunto-me até que ponto continua válido.)

A primeira exposição de que tenho memória foi em 2007, no Depósito6, onde Pakharu foi colocado numa prateleira entre potes vários, à esquerda, e modelos de doenças venéreas, à direita. Parecia uma piada: um sacerdote Egípcio, um pote, e uma lesão sifilítica entram num bar. Para o Centenário da Universidade do Porto, em 2011, Pakharu deu novamente um ar da sua graça, assumindo lugar de destaque na exposição “Coleção Egípcia do Museu de História Natural da Universidade do Porto”7. Aqui, pelo menos, estava rodeado pelos outros objetos egípcios que viajaram consigo de Berlim. Em 2019, lá saiu novamente Pakharu, desta vez para festejar o centenário da Faculdade de Letras da Universidade do Porto na exposição “Culturas e Geografias”8. Tinha, novamente, lugar de destaque na sala.

É curioso como, sempre que entra em cena, Pakharu surge ligeiramente mais contextualizado. Se, no Depósito, era apenas uma peça entre muitas — numa prateleira alta, muito acima das cabeças dos visitantes —, na “Coleção Egípcia” assumia lugar central, em claro destaque face às restantes peças da sala. Em “Culturas e Geografias”, está novamente posicionado à parte e, curiosamente, não aparece fotografado nem nos materiais promocionais da exposição, nem no catálogo da mesma. O visitante atento reparará que, ao contrário das anteriores, a exposição “Culturas e Geografias” não poupa no contexto: abre precisamente com uma explicação de como nos chegaram todas as peças, incluindo o cadáver do sacerdote Pakharu.

Independentemente das honras que lhe são concedidas face aos outros objetos que viajaram consigo de Berlim, Pakharu continua a não ser assim tão diferente deles. É uma pessoa e, ao mesmo tempo, um objeto. Como refere Katie Clary no Routledge Handbook of Museums, Heritage, and Death, o Museu objetifica não por defeito, mas por feitio: aqui, tudo tem um número de registo de inventário.

De Lisboa ao Porto, voltemos agora a Coimbra. Estamos no Gabinete de Curiosidades do Museu da Ciência de Coimbra, numa sala que, ao contrário do que o seu nome enigmático pode sugerir, só existe há um ano. Estamos às escuras, iluminados apenas por luzes LED em tons arco-íris. À nossa frente, exposta na companhia de dois corvídeos, um peixe-lua, e uma pilha de corais: uma cabeça-troféu9.

Se este termo não evocar uma imagem mental, é porque o leitor poderá estar mais familiarizado com o termo inglês, shrunken head, ou “cabeça encolhida”—como aquelas que o Museu Pitt-Rivers, em Inglaterra, decidiu recentemente deixar de exibir, eliminando assim uma das suas exposições mais populares. 

Esta cabeça-troféu foi mumificada pela comunidade Munduruku, um grupo indígena que ainda hoje vive no Brasil. Era comum nesta comunidade mumificar as cabeças dos inimigos derrotados e transportá-las como troféus durante cinco anos, após os quais perderiam o seu poder espiritual. Um artigo de Sheila Mendonça de Souza e Maria do Rosário Martins, publicado na revista Antropologia Portuguesa, diz-nos que esta cabeça pertenceu a um jovem, provavelmente do sexo masculino, provavelmente membro de uma comunidade indígena rival dos Munduruku. Chegou a Coimbra aproximadamente em 1855, doada por José Coelho da Gama e Abreu.

No século XIX, escrevem as autoras, “estes [troféus], como outros tipos de materiais exóticos, eram grandemente valorizados, destinando-se a Gabinetes de Curiosidades, coleções particulares ou públicas, onde seriam estudados e passariam a compor acervos.” Efetivamente, Coimbra optou por expor a cabeça num Gabinete de Curiosidades, não cortando em nada com a prática museológica de séculos passados. As autoras acrescentam que “cabeças troféu são o suporte material de estigmas e representações, associadas à condição guerreira dos Munduruku. O seu significado exige uma reflexão aprofundada entre matador – inimigo – vítima.”

Engane-se o visitante se acha que terá oportunidade de refletir sobre isto, aprofundadamente ou não, no contexto da exposição. A cabeça deste jovem indígena não está etiquetada, tal como não o estão os outros milhares de objetos que compõem a exposição. “Neste local não há legendas explicativas,” escreve a Universidade numa apresentação do espaço, “porque se pretende recrear a pré museologia de ciência onde a contemplação e a admiração eram levadas ao extremo.”

É possível que a recriação tenha sido, também ela, levada ao extremo. Pouco depois da inauguração10, a historiadora Maria Isabel Roque apresentou uma reflexão aprofundada sobre o Gabinete e as suas implicações museológicas, descrevendo a exposição como “um projeto aparatoso, mais exibicionista do que expositivo”. A certa altura, deparou-se com a mesma questão que nos traz aqui: a presença de restos mortais humanos, incluindo uma cabeça-troféu, neste ambiente de descontextualização total. Após reflexão sobre o Código de Ética do ICOM sobre a exposição de restos mortais humanos, sobre as razões que terão levado à inclusão da cabeça-troféu na exposição, e sobre o historial de conservação da mesma, escreveu a autora que, “quando todas as razões, éticas e museológicas, aconselhavam à sua ocultação, a forma como a paxiuá-á foi integrada no Gabinete é uma inexplicável forma de banalização e desrespeito.

Nenhuma das pessoas que até agora visitámos viveu aqui, ou cresceu aqui, ou morreu aqui. São estrangeiras que ninguém quer mandar para a sua terra — estrangeiras deslocadas porque, presumivelmente, servem um qualquer propósito superior nos museus portugueses que hoje as albergam. 

O visitante poderá pausar para refletir sobre este propósito superior: talvez seja educativo ou filosófico. Se presumirmos que é educativo, talvez este seja um bom momento para o visitante se perguntar: O que é que nos foi ensinado, exatamente, nas exposições que vimos até aqui? O que devemos aprender com os indivíduos Chancay que agora moram no Carmo? O que aprendemos com Pakharu, em cada uma de suas três exposições? O que aprendemos com a cabeça-troféu do Gabinete de Curiosidades? E se não tivermos aprendido nada, porque o propósito superior que justiça a exposição destes corpos não é educativo — então qual é?

O visitante poderá refletir, também, sobre este estranho princípio utilitário a partir do qual olhamos os cadáveres dos outros, mas não os nossos — princípio esse que justifica violar as práticas funerárias de outras culturas (de onde vieram as múmias sul-americanas de Coimbra e de Lisboa, afinal? De onde veio Pakharu?) se isso contribuir de alguma forma para a nossa. Afinal, diferentes culturas têm diversas crenças e práticas em torno da morte e do tratamento de restos mortais — e é rara a cultura que considera o Museu um espaço digno de descanso eterno. Embora não nos seja possível adivinhar o que pensariam os dois indivíduos da comunidade Chancay que vivem atualmente nas vitrinas do Carmo, podemos presumir que não contavam passar a eternidade ali, sob o olhar curioso, perturbado, ou indiferente de quem passa.

O que nos traz, colega visitante, ao conceito de consentimento.

Embora os seres humanos tenham adquirido muito cedo, presumivelmente assim que aprenderam a comunicar, a capacidade de dizer sim ou não, o conceito de consentimento é complexo. Um breve exemplo: temos diferentes definições para consentimento médico, consentimento legal, e consentimento sexual. Todas elas estão em permanente evolução, e todas elas refletem a forma como indivíduos, comunidades, e culturas (provavelmente por essa ordem) entendem os limites da sua autonomia.

Não podemos dizer se os indivíduos que conhecemos nesta viagem teriam um entendimento de consentimento semelhante ao nosso — e isso pode levar-nos a desvalorizar qualquer decisão que pudessem ou não ter tomado em vida sobre a exposição do seu cadáver. Afinal, se o sacerdote Pakharu não entendia o nosso conceito de consentimento nem o nosso conceito de museu (outra invenção recente), como poderia consentir ou não a sua presença num?

Se esta desvalorização da sua opção nos levará a manter o seu corpo em exposição, ou a retirá-lo, é uma discussão completamente diferente. Para já, basta-nos concluir que, na ausência de consentimento individual, o Museu vê-se obrigado ou a assumi-lo, ou a procurá-lo em comunidades que tenham este indivíduo como antepassado, ou a procurá-lo no conhecimento histórico disponível sobre a sua cultura de origem.

O visitante poderá refletir sobre isto da próxima vez que se deparar com uma múmia egípcia ou peruana. Poderá, se quiser, colocar-se algumas das questões sugeridas pelo bioeticista Arthur L. Caplan11: Quem deu permissão para expor esta pessoa? Será essa permissão adequada? E como é que esta exposição se articula com os nossos próprios valores sobre consentimento e permissão?

O visitante poderá colocar-se as mesmas questões ao visitar a exposição Body Worlds, que obtém muitos dos seus cadáveres a partir de um programa de doação12— mas que também já expôs corpos de proveniência incerta13, provavelmente de indivíduos executados. Finalmente, o visitante poderá considerar o caso de Jeremy Bentham, o filósofo britânico que definiu o seu próprio propósito post mortem: escolheu passar a eternidade perfeitamente preservado e aperaltado nas suas próprias roupas. De chapéu de palha e bengala sempre à mão, continua a receber curiosos há quase 200 anos, no University College London14.

Para a última etapa do nossa visita museológica, vamos voltar a Coimbra, mas não vamos visitar nada. Nem esta “coleção” está em exposição, nem esta sala — algures num sótão15 — está aberta ao público. Plantemo-nos em frente ao Departamento de Ciências da Vida da Faculdade de Ciências e Tecnologia, e imaginemos.

Imaginemos 29 crânios, arrumados dentro de uma vitrina. 29 indivíduos, portanto. Chegaram a Coimbra em 1882. Antes disso, tinham vivido em Timor. Lá morreram — ou, especificamente, foram mortos — às mãos de guerreiros timorenses ao serviço do governo colonial Português.

Ricardo Roque, historiador e autor do livro Headhunting and Colonialism, traçou a história desta coleção, que “parece ter sido a primeira coleção ultramarina de restos humanos recebida por museus em Portugal”16. Após uma longa investigação, o autor conseguiu rastrear a origem da coleção a um episódio de conflito militar específico, em que guerreiros timorenses ao serviço de Portugal decapitaram outros timorenses que resistiam ao governo português na ilha. No fundo, e nas palavras do autor, “a coleção de Timor em Coimbra é indício de uma forma colonial de governo pela violência, que juntava certos timorenses e portugueses na decapitação de timorenses inimigos.”

Recolhidos por missionários em Timor e remetidos para Portugal, os crânios foram posteriormente sujeitos a estudos raciais — de acordo com a ciência antropológica da época, uma ciência racial que pretendia classificar e, obviamente, hierarquizar as diferentes “raças” humanas.

Esta coleção, como já referi, não está em exposição. Não existe qualquer possibilidade de um visitante se cruzar acidentalmente com ela numa visita a um museu. No entanto, seria impossível não a discutir numa conversa sobre “os mortos dos outros” que temos nos nossos museus. Se há coleção em Portugal que exige um debate generalizado sobre restos mortais humanos em museus, é esta — esta coleção de crânios de 29 indivíduos Timorenses (originalmente 35) decapitados ao serviço de uma potência colonial que depois os submeteu a estudos raciais.

Na arte, o debate está aceso: Zia Soares, artista, filha de pai timorense e mãe angolana, dedicou a sua performance Fanun Ruin17 a estes indivíduos. Em tétum, uma das línguas oficiais de Timor-Leste, Fanun Ruin quer dizer “chamar ossos”— precisamente o que a artista fez, em 2022, quando lhes perguntou pelo seu rosto, pelo seu nome, pelo resto do seu corpo.

E também a nível institucional há sinal de movimentações. A Universidade de Coimbra anunciou, em Maio de 2023, que daria início a um debate sobre a restituição dos crânios a Timor-Leste — mesmo não tendo recebido ainda qualquer pedido para a sua restituição.

A possibilidade de restituição (ou, neste caso, repatriação) de restos mortais humanos em museus será, também, digna de reflexão por parte do visitante. Não se espera que o visitante seja capaz de discutir, ponto por ponto, se determinado indivíduo deve ou não ser repatriado, mas apenas que compreenda a razão de existência do debate.

De um ponto de vista global, os debates sobre repatriação de restos mortais humanos surgem frequentemente no contexto de comunidades Indígenas que reclamam a restituição dos seus antepassados de forma a poder completar os seus ritos funerários. Pode ser um pedido com base religiosa, espiritual, ou cultural, mas também pode ter proteção legal: nos EUA, por exemplo, o direito das comunidades Indígenas de solicitar a repatriação está consagrado no Native American Graves Protection and Repatriation Act.

O debate sobre a repatriação de restos mortais humanos existe a par de um debate mais vasto sobre a restituição de objetos aos seus países de origem. Não são, necessariamente, o mesmo debate — como vimos, os restos mortais humanos têm tanto de objeto como de pessoa — mas têm pontos em comum. Em 2018, a jornalista Lucinda Canelas descreveu o direito à restituição de um objeto como um “direito à memória”. Não será descabido dizer que o direito à repatriação de um antepassado, ou até mesmo de um conterrâneo, também o é.

Para o visitante que nunca pensou estes objetos e corpos desta forma — para o visitante que nunca pensou que eles poderiam ser requisitados e levados para longe da vitrina onde sempre os conheceu —, estas ideias de restituição e repatriação podem parecer algo distantes e rebuscadas, autênticas teorias da conspiração que pretendem nada mais nada menos do que depauperar os grandes Europeus e Norte-Americanos. Na realidade, cada caso é um caso, e António Pinto Ribeiro, num texto para o Público, listou alguns dos mais recentes e relevantes18. Em Portugal, ainda nenhuma restituição — mas, argumenta o poder político, também nenhuma reclamação dos países de origem.

Foi uma longa visita. Fomos ao Chile, ao Egipto, à Alemanha, ao Brasil, a Timor, tudo sem sair de Portugal. Visitámos uma série de pessoas que não poderíamos ter conhecido fora do Museu — novamente o M grande —, e refletimos sobre o propósito superior que as mantém aqui connosco, na nossa inquisitiva companhia. Falámos sobre múmias, peruanas e egípcias, e vimos como são presença assídua no Museu. Passámos pelos gabinetes de curiosidades do passado e pelo Gabinete de Curiosidades do presente — ambos com cabeças-troféu em exposição. Tocámos muitíssimo ao de leve na Antropologia de outros tempos, naquela ciência das “raças” humanas que nos trouxe uma coleção de crânios. Falámos sobre objetificação, sobre contextualização, sobre consentimento, sobre restituição. Merecemos uma pausa.

Eventualmente, o visitante poderá decidir o que fazer com toda esta reflexão. Talvez nada. Talvez continue a visitar o Museu como sempre o fez. Talvez comece a evitar as exposições que incluem pessoas em vitrinas — mais fácil nuns museus do que noutros, mas nunca impossível. Talvez adote uma postura oposta, mais distante e inventarial — que importam estas ambiguidades todas? Se tudo no Museu tem número, então tudo no Museu é coisa.

Entretanto, a saída faz-se, como em todo o bom Museu, pela loja de lembranças. Se o visitante quiser comprar livros para poder continuar a sua reflexão, recomendo dois: The British Museums. The Benin Bronzes, Colonial Violence and Cultural Restitution, de Dan Hicks, e Mummified: The Stories Behind Egyptian Mummies in Museums, de Angela Stienne.

 

  1. http://www.museudaciencia.org/index.php?module=content&option=collections&action=description ↩
  2.  https://museudaciencia.inwebonline.net/ficha.aspx?id=5583&src=antropologia ↩
  3.  https://scholarlypublications.universiteitleiden.nl/access/item%3A2910310/view ↩
  4. https://www.buala.org/pt/a-ler/o-tempo-das-huacas ↩
  5. https://pt.scribd.com/document/293012290/As-Mumias-de-Chancay ↩
  6.  https://sandravieirajurgens.com/deposito-anotacoes-sobre-densidade-e-conhecimento ↩
  7. https://sigarra.up.pt/reitoria/pt/noticias_geral.ver_noticia?p_nr=1283  ↩
  8. https://mhnc.up.pt/culturas-e-geografias/ ↩
  9.  https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/21526/1/AP20.21.08_Mendonca_Souza.pdf ↩
  10. https://amusearte.hypotheses.org/9095 ↩
  11.  https://www.medscape.com/viewarticle/987908?0=reg=1 ↩
  12. https://bodyworlds.com/plastination/bodydonation/  ↩
  13. https://www.theguardian.com/world/2004/jan/23/arts.china  ↩
  14.  https://www.ucl.ac.uk/news/2020/feb/jeremy-bentham-finds-new-home-ucls-student-centre ↩
  15. https://www.publico.pt/2023/05/07/culturaipsilon/noticia/devolver-29-cranios-decapitados-timor-universidade-coimbra-vai-debater-restituicoes-2048545  ↩
  16. https://www.publico.pt/2020/05/24/culturaipsilon/noticia/ossos-humanos-historias-coloniais-1917278 ↩
  17. https://www.publico.pt/2022/09/09/culturaipsilon/noticia/35-cranios-decapitados-timor-estao-guardados-coimbra-2019897 ↩
  18. https://www.publico.pt/2023/01/29/culturaipsilon/analise/restituicao-regresso-exilio-2036426 ↩

(Shifter)