Dedicas todo o teu tempo aos estudos. Comportas-te nas aulas, lês os manuais, fazes os trabalhos de casa. Progrides e repetes o procedimento a cada novo nível de dificuldade até que desbloqueias um novo mapa. No mundo do trabalho os dias alongam-se, e a tua concentração afunila-se. Já não há tempo para a descoberta e todo o tempo se deve dedicar ao cumprimento, com profissionalismo e resiliência, das ordens do patrão. Dependes do salário, a providência social não garante uma vida digna, e entre tantos deveres mudar deixa de ser um direito. Há que trabalhar para as custas do presente, e trabalhar com medo do futuro que nunca se sabe o que trás. Trabalhar para pagar a renda, para alimentar a família, para fruir do mundo. É do trabalho que surge a recompensa, é o trabalho que justifica o salário, e serão as nossas aptidões para o fazer a garantir-nos uma vida digna, dizem-nos. Mas será mesmo assim?
Sem contar a história de ninguém, esta história com que qualquer um se pode identificar, reflete uma narrativa de carácter sistémico. A nossa vida, desde cedo que se organiza em função do trabalho, numa aposta baseada na expectativa de que o salário cumprirá, um dia, num futuro hipotético, a missiva de garantir a cada assalariado uma vida digna. Mas se durante muitos anos o seu questionamento esteve for de questão, os dados de que hoje dispomos tornam mais difícil acreditar nela.
A inflação que se reflete nos lucros das grandes corporações, o galopante custo da habitação em zonas de baixos salários, a precariedade, que se vai disseminando pelo mundo como um vírus que corrói direitos e garantias, com um carácter quase pandémico, ou a flagrante crise climática, não só ameaçam a promessa de ver no salário uma vida digna, como denotam a perversidade dos caminhos que temos percorrido atrás desta ideia. Perante tantos sinais, urge alargar os horizontes da nossa visão e essa é a proposta do Instituto para a Imaginação Radical, espaço onde nasceu o manifesto Art For UBI de Marco Baravalle, Emanuele Braga e Gabriella Riccio.
“Enquanto a elite financeira continua a usar o mercado de arte como um porto seguro para ativos financeiros, a pandemia da Covid-19 evidenciou ainda mais a fragilidade e precariedade de trabalhadores do meio artístico em todo o mundo. Este contexto alimentou a discussão em torno do Universal Basic Income (Rendimento Básico Universal). O manifesto Art for UBI defende que esta medida é condição necessária para repensar um modelo económico ecologicamente extrativista, corrigir assimetrias de raça e género e mudar a atual estrutura neoliberal do mundo da arte”, lê-se na descrição do projeto.
Reunindo em formato livro um conjunto de ensaios de artistas sobre o Rendimento Básico Incondicional, Baravalle, Braga e Riccio, procuram não só criar uma publicação que informe este debate, como iniciar uma conversa alargada sobre as mudanças necessárias na nossa sociedade. Fruto dessa intenção, Baravalle e Braga estarão dia 29 de Junho (Quinta feira) no Teatro do Bairro Alto, em Lisboa, para uma apresentação ao vivo do seu manifesto e, antes disso, responderam por e-mail a uma pequena entrevista sobre a sua investigação.
Emanuele Braga é ativista, artista, cofundador do Institute of Radical Imagination e membro de MACAO, estrutura onde fez experiências com Common Coin e Bank of the common. Contribuiu para as performances Income. The unconditional speech, no Wiener Festwochen em junho 2021, e em One income, many worlds, no Museo Reina Sofia, em setembro 2021. Marco Baravalle é ativista, investigador, cofundador do Institute of Radical Imagination e membro de S.a.L.E. Docks, coletivo independente que se dedica à relação entre arte, ativismo e gentrificação. Foi um dos contribuidores para a performance One income, many worlds, no Museo Reina Sofia, em setembro 2021.
Shifter (S.): Sei que pode ser uma pergunta difícil, mas dado que mergulharam no tema: são capazes de nos dar um retrato do horizonte do RBI? Quais são os principais obstáculos e quais seriam os principais ganhos globalmente?
Emanuele Braga (E.B.): Acho que temos de alterar essa perspectiva: a verdade é que o trabalho já não chega. A financeirização da economia e o desmantelamento e a precarização do trabalho tornaram impossível distribuir suficiente riqueza através do trabalho. Por essa razão, acredito que na área europeia devemos levar estes dois possíveis cenários a sério: por um lado, lutas pelo estado social que substitua e complemente a falta de salário pelo trabalho. Por outro, temos de nos preparar para grandes processos de expulsão e revolta social.
Marco Baravalle (M.B.): Se, como o Emanuele diz, o dinheiro do salário já não é a única forma de distribuição da riqueza, também é verdade que o grande obstáculo para pensar o nosso sistema da Europa, vem dos governos reacionários, por de trás de retóricas populistas, que uma vez no poder cortam no já fraco sistema de proteção social e decretam leis que aumentam a diferença entre os ricos e os pobres. Estamos a assistir a esse processo agora em Itália. Mas não é um problema exclusivo da extrema direita. A rigidez com que o Macron reagiu ao grande movimento francês contra a sua pensão de reformas é inacreditável. Por outro lado, estes movimentos em França mostram que mais camadas da sociedade estão a questionar em força a distribuição de rendimentos, e também o fazem em conexão com outros problemas, com a justiça ambiental.
S.: Ultimamente, com a emergência dos modelos generativos temos visto muita conversa sobre a possível desvalorização dos artistas. Contudo se entendermos como funcionam estes modelos vemos que não são criativos, não podem substituir artistas – quanto muito podem produzir objectos para ser transacionados nas mesmas cadeias de valor. Acham que isto tem mais a ver com o modelo económico do que com a arte em si? Acham que é importante colectivamente pensar o que é a arte e o que é o mercado da arte?
E.B.: Eu não acredito que a IA esteja a roubar trabalhos de artistas. Acho que a relação entre a arte e a inovação tecnológica tem de ser interpretada de forma diferente. A [ideia de] criatividade, a figura do artista, foi um laboratório para a transição do paradigma do trabalho operário para um paradigma pós-fordista. É um modelo de produção baseado em ser empreendedor de si próprio, flexível, colaborativo, multi-tarefa. Dentro deste paradigma das indústrias criativas, a organização social das plataformas digitais desenvolveu-se. O laboratório da criatividade e o excedente que esta continuamente reproduz são capturadas pelo capital em forma de inovação tecnológica. A criatividade dissolve-se na sociedade como uma aspirina num copo de água, como diz Paolo Virno no “Gramática da multitude”. Eu acrescento: que desse copo de água emergiu uma sociedade de controlo algorítimico e a automação dos nossos comportamentos. Por trás da I.A. está a inteligência coletiva de milhões de pessoas que contribuíram para as suas capacidades, centenas de milhar de trabalhadores mal pagos que invisivelmente mantém a infraestrutura e o seu funcionamento. Ao contrário das indústrias criativas, a arte mais do que nunca tem o papel de dar expressão à subversão, sabotagem, ao espaço para desautomatizar os circuitos tecnológicos de dominação.
S.: Acreditam que o RBI podia ser importante também para libertar artistas da sua necessidade quase existencial de produzir para o mercado?
E.B.: Eu não quero perpetuar a ideia da arte como um espaço de privilégio, criado por individuos que podem pagar por ela económica e culturalmente. O nosso amigo e camarada, Gregory Sholette, no “Dark Matter”, contrasta a enorme produção invisível de símbolos, arte, cultura, que se dá no ativismo e na cooperação social, com os poucos artistas reconhecidos como famosos pelo sistema artístico e o mercado. A imensa produção de arte, signos, e a cultura da própria sociedade está para os artistas famosos como a matéria negra no universo está para as poucas estrelas visíveis. Eu acredito que enquanto instituições artísticas, temos de construir dispositivos discursivos que existam dentro do social e das lutas. Enquanto o mercado da arte tende a mercantilizar o ativismo e a investigação militante, a estetizar as lutas, eu acredito no oposto: devemos compreender como os dispositivos expressivos podem tornar-se máquinas de guerra (no sentido em que Gilles Deleuze usa este termo) para organizar processos de libertação na sociedade.
M.B.: Quero acrescentar que é muito importante criar novas possibilidades de subjetivação dos artistas fora do mercado. Esse é um dos objetivos da arte radical, encontrar caminhos para a arte e para ser um artista (ou um trabalhador da arte) dentro, mas também contra e para além dos caminhos pré-definidos (escola de artes-bineal-museu-galeria). Isto não significa, como no senso comum de vanguarda, fundir a vida e a arte, mas antes ganhar uma nova autonomia para a arte, uma maior autonomia da presença pervasiva do capital.
S.: Acreditam que esta mudança é importante para desbloquear outras “lutas transfeministas e decoloniais”? Pode servir para mitigar desigualdades estruturais?
E.B.: A perspectiva feminista foi a primeira a focar-se neste ponto, a ir para além da interpretação que Marx fez da classe trabalhadora. As feministas afirmaram que um dos aspetos centrais da extração de capital reside na inivisibilização do trabalho reprodutivo. O capital sempre lucrou mais de ciclos de reprodução mais do que da exploração do trabalho assalariado.
Na investigação que estamos a fazer em vários territórios europeus torna-se evidente que a cidadania e a raça são outros dois grandes dispostivos de exploração. Negar direitos iguais, e relegar indivíduos racializados aos trabalhos e às posições sociais mais degradantes, é uma alavanca incrível para a exploração e a acumulação de privilégio.
Reconhecendo um Rendimento Básico Incondicional, e serviços sociais universais como a educação, a saúde, ou a habitação para todos, é, sem dúvida, uma medida que quebra a cadeia de chantagem e exploração. É uma forma de assegurar que todos os individuos têm acesso ao nível mais básico de segurança económica e aos serviços fundamentais, independentemente do seu contexto ou das suas circunstâncias.
M.B.: Vemos muitas vezes como as explorações do género, raça e classe se intersectam. Precisamos de encontrar formas de criar intersececionalidade positiva também. É por isso que, para além do impacto social, nos focados nos possíveis impactos do RBI no género, raça e nas desigualdades ecológicas. Se me permitem, um limite que é por vezes visível dentro do mundo da arte neste preciso momento é a atenção generalizada a perspectivas decoloniais e queer, mas enquadradas no sistema de aceitação geral do sistema neoliberal. Pelo contrário, eu concordo com a Combahee River Collective (um colectivo de feministas afro-americanas dos anos 1970) quando escreveram: “Nós somos socialistas porque acreditamos que o trabalho deve ser organizado para benefício colectivo daqueles que trabalham e para criar produtos, não lucros para os chefes. Os recursos materiais devem ser equitativamente distribuidos por aqueles que criam esses recursos. Nós não estamos convencidas, contudo, que uma revolução socialista que não seja também feminista e anti-racista, garanta a nossa liberação”
S.: Alguns críticos do RBI dizem que promover essa agenda – de dar dinheiro aos individuos – pode promover uma sociedade mais individualizada, provocar a desconexão de causas colectivas e um enfraquecimento do estado social. Como responderiam a esta crítica?
E.B.: Não faço ideia, não estou a tentar vender nada, mas a tentar compreender. E na investigação que temos feito ao ouvir as pessoas, eu fui-me apercebedo que as pessoas estão vulneráveis a depressão, burnout, bullying, a sentirem-se sós e isoladas, ao ponto de se despedirem dos trabalhos porque é esse trabalho que induz o individualismo, a solidão e a competição seletiva. O trabalho, não o RBI, torna-nos mais sós e competitivos. Para além disso, as pessoas quando têm acesso a serviços sociais e a apoios ao rendimento, geralmente, começam a cooperar. Fazem coisas que antes não se podiam dar ao luxo de fazer. Penso que é similar À gestão do tempo de lazer, tempo de nutrir relações, de brincar, para fazer algo com significado, para se organizar com base nas suas convicções. E não acho que alguém tema que dar mais tempo de lazer às pessoas possa resultar numa sociedade de individualistas competitivos. Parece-me absurdo e uma propaganda cheia de viéses e ideias pré-concebidas.
M.B.: Eu acho que tal afirmação é simplesmente uma mentira. O sistema neoliberal é baseado na ideologia da individualização. A cooperação é desincentivada, a nossa economia em rede é fruto da inteligência social, mas os seus frutos são escolhidos e colhidos apenas por lucro. Em vez disso, acreditamos que as medidas de garantia de rendimento e um sistema de segurança social sólido são instrumentos importantes para libertar todo o tempo atualmente investido na competição individual e dar mais espaço às dinâmicas colectivas e aos processos de cooperação.
S.: O vosso projecto tem várias vertentes, entre elas um livro com várias perspectivas sobre o RBI. Vocês identificam-se como artistas, mas o vosso trabalho foge à ortodoxia da produção de peças para o mercado e as galerias. Acham que é importante seguir esta via, criar pretextos para os artistas pensarem mais sobre o mundo e menos sobre a próxima exposição?
E.B.: A história da arte está cheia de artistas que disseram o que não podia ser dito, que mostraram o que os regimes políticos e culturais tentaram tornar invisível. A história da arte é também povoada por dissidentes políticos ou ativistas que fingiram ser artistas ou que usaram a arte como forma de exprimir os seus pensamentos sem serem directamente presos. A história da arte a que quero pertencer é povoada por este tipo de figuras. E deixo o desafio de procurar e estudar cuidadosamente a história da arte para além da superfície, porque não acredito que se encontre muitos artistas que tenham deixado marca sem pertencer a uma destas duas categorias.
M.B.: No meu caso, nem me identifico como artista. Normalmente apresento-me como activista, investigador e curador. Para mim, o Art for UBI é sobretudo uma ferramenta para experimentar um método performativo de investigação militante. Algo onde a política e a estética se intersectam.
Talvez o Emanuele esteja certo, a nossa genealogia encontra-se principalmente nessa ‘outra’ história da arte (uma das várias que existem) e, de facto, o que caracteriza o nosso currículo é um logo compromisso com o activismo de origem popular.
S.: E quão importante é fazê-lo coletivamente? Acham que o caminho tradicional das artes tem dado lugar a artistas mais isolados? É necessário recuperar o tecido social neste aspeto?
E.B.: Eu tenho trabalhado como artista nos últimos 25 anos, e sempre assinei os meus principais trabalhos com assinaturas colectivas. Na verdade, mesmo quando assino um trabalho só com o meu nome e apelido, eu sei que, lá no fundo, estou a fazer batota. Tenho uma grande convicção de que os trabalhos, as acções, os discursos, e os textos que produzimos, são resultado de um complexas relações situadas. Eu não seria nada sem a rede de relações em que escolho operar. A autoria baseia-se mais nessa série de interdependências que escolhemos ou que calhamos a ter. Eu sozinho não sou nada. E o meu nome é sempre um anagrama, cujo significado está em constante evolução e implica inteligência colectiva, recursos não humanos, desejos e condições de opressão. É por isso que aconselho toda a gente, quando assina uma obra como autor único, a passar muito tempo a elucidar explicitamente a genealogia e as interdependências de que ela deriva.
M.B.: A resposta do Emanuele adequa-se perfeitamente ao meu caso. Mas deixa-me acrescentar uma coisa: para além de reconstituir o tecido social, eu acho que aquilo que habitualmente se chama arte radical também deve redescobrir o seu caminho para os conflitos e as lutas sociais. Muitas vezes, nas décadas passadas, a arte engaja socialmente apresentou-se muitas vezes com uma atitude de ONG, preocupada em reparar supostas micro-fracturas enquanto ignorava completamente as causas estruturais de tais danos.