O modelo económico e político por detrás do Catar 2022

By | 23/11/2022

Em 2010, a Rússia ganhou a votação para organizar o Mundial de Futebol Masculino 2018 e, para a surpresa de muitos, nesse mesmo dia o Catar foi escolhido para organizar o torneio seguinte, em 2022. 

Ao contrário da Rússia, o vencedor de 2022 era um pequeno e pouco conhecido Emirado

— com a área do município de Beja — sem uma forte cultura de futebol. A votação, contudo, não deixou margem para dúvidas, o Catar vencera os Estados Unidos com 14 votos contra 8 no Comité Executivo da FIFA, deixando para trás candidaturas como a da Austrália, Coreia do Sul ou Japão. Durante a última década, muito se especulou e investigou sobre os méritos da votação e como o Catar conseguiu exercer a sua influência. Para entender como é que uma nação com apenas 330 mil nacionais — que sofreu um bloqueio económico e diplomático por parte dos seus vizinhos nos últimos anos — conseguiu tal feito, é necessário analisar a sua estrutura política e económica com algum detalhe.

O campeão da desigualdade com um estado social máximo para um grupo mínimo 

A estrutura política (Emirado absolutista) e económica (centrado maioritariamente no sector do petróleo e gás) fazem do Catar o país onde o 1% mais rico detém a maior concentração de rendimentos. Segundo um Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) da ONU de 2019, os 1% mais ricos (cerca de 29 mil habitantes) detinham quase 30% de todos os rendimentos gerados no país. O Catar fica na frente do Brasil e África do Sul, países com legados históricos no que diz respeito a desigualdade social, política e económica.

Num estado altamente desigual, com um dos maiores níveis de rendimento por habitante, foi criado um generoso sistema assistencialista apenas para a população nativa, que representa cerca de 10% da população residente. Para além da saúde e educação totalmente gratuitas, as pensões mínimas para reformados da função pública – onde a grande maioria dos nacionais trabalham – foram recentemente actualizadas para 15000 Riais (cerca de 4000 Euros), mais 6000 Riais (cerca 1500 Euros) na forma de subsídio de habitação. Pessoas em “situação de necessidade” recebem uma transferência do estado de pelo menos 6000 Riais (cerca 1500 Euros), que no caso de um casal com dois filhos chega aos 10000 Riais (cerca de 2650 Euros). 

Um país, uma empresa 

A economia do Catar, como a esmagadora maioria dos países do Golfo, é dominada pela exportação de gás e petróleo para o mundo. O mercado de petróleo e gás representava, de forma direta, 60% da economia do Catar, que é totalmente explorado pela empresa estatal QatarEnergy. Este contributo não tem em conta os efeitos indirectos do sector através dos consumo dos trabalhadores do sector (restaurantes, habitação, etc) ou o retorno de reinvestimentos vindos do gás e petróleo (Fundo Soberano).

Esta característica faz com que o Emirado do Catar consiga controlar de forma centralizada as vastas riquezas extraídas do seu território. Para além da criação de um estado social somente para os nacionais, este modelo económico permite ao Emirado investir de forma estratégica os excedentes gerados pela QatarEnergy: seja em infraestructura local, seja em diplomacia económica e outras rendas económicas no exterior. 

Exportar capital e influência e importar trabalho

A forma como o Catar ganhou a candidatura para o Mundial e construiu a infraestrutura necessária para o evento resumem a forma como o Emirado se relaciona economicamente com o resto do mundo. Através da acumulação de capital gerado com a exportação de petróleo e gás, a família real do Catar — utilizando o fundo soberano, o Qatar Investment Authority, e as suas subsidiárias, como seu braço financeiro — tem vindo a adquirir empresas, imóveis e outro tipo de organizações pelo mundo fora. 

A compra do PSG, pela Qatar Sports Investment, fez parte da negociação para conseguir os votos necessários na FIFA para ganhar o mundial, mas o negócio está longe de ficar por aqui. Só na cidade de Londres, estima-se que a família real do Catar detenha propriedades avaliadas em 2 mil milhões de libras — sendo, por exemplo, uma das principais acionistas do Aeroporto de Heathrow. O fundo soberano Catari tem diversificado o gás e petróleo através desta prática, maioritariamente rentista, em cidades como Londres, Milão e Nova Iorque

Para além da população nacional ter o direito a extensivos programas sociais, também beneficia de serviços e infraestrutura barata beneficiando da superexploração de trabalhadores emigrantes em sectores como a construção, restauração e limpeza. Um processo de exploração dos países mais pobres da região, dentro do seu próprio território, baixam-se os custos do trabalho em troca das remessas enviadas para os países de origem por parte de uma mão de obra superexplorada — muitas vezes em situações análogas à escravatura, como no caso da construção de estádios para o Mundial.

De resto, foi só após vários escândalos associados com o mundial, que o Catar decidiu implementar um salário mínimo de 1000 Riais, que pode incluir em certas condições subsídio de alimentação e habitação de 800 riais, em 2021. Um salário que é o equivalente a 265 Euros (477 Euros se incluir subsídios) e que tendo em conta o elevado nível de preços no Emirado, equivalente a 65 euros em Portugal em 2021 (144 Euros incluindo subsídios), menos de metade do valor base do rendimento social de inserção. 

As relações entre Portugal e o Catar, em especial no futebol, não são tão conhecidas no quadro do capitalismo global e das relações internacionais mas acabam por ilustrar estas dinâmicas descritas. No processo de privatizações do governo PSD-CDS, o fundo soberano do Catar foi apresentado como potencial comprador da TAP, REN e EDP (e apesar de não ser o principal accionista, detém parte das ações da EDP) e este ano acabou por comprar parte do SC Braga.

Simultaneamente, o Catar reúne condições atrativas – como altos salários – em sectores como o Futebol acabando por ‘importar’ de Portugal trabalhadores para estes sectores, como o treinador Jesualdo Ferreira (Al-Sadd, de 2015/16 a 2018/2019), ou os jogadores Ruben Semedo (Al-Duhail) ou Joao Carlos Teixeira (Umm Salal), entre outros. Sendo o expoente máximo desta relação, o jogador Ró-Ró, ex-jogador do Farense e da formação do Benfica, com uma passagem muito discreta pelo futebol nacional que há 11 anos jogas no Catar, foi naturalizado Catari, e vai participar no mundial. A título de curiosidade refira-se que o Catar organizou o Mundial de Andebol de 2015 o que gerou uma ampla discussão sobre a naturalização apressada de grandes atletas do andebol global, em final de carreira, nos anos antes da realização do evento. A lista inclui atletas nascidos em Espanha, Montenegro ou França, potências do andebol mas também o atleta cubano Frankis Carol, à época atleta do Sporting CP.  


A organização do mundial de futebol masculino no Catar tem causado, compreensivelmente, uma vaga de indignações associadas aos direitos humanos no Emirado. Contudo, sem compreender e combater os mecanismos pelos quais o Emirado consegue influenciar a política e economia internacional, não evitaremos novos Catares.

(SHifter)