Edward Snowden trabalhava na Agência de Segurança Nacional norte-americana (NSA) quando decidiu divulgar documentos internos da agência e, com a ajuda dos jornalistas de The Guardian e Washington Post, denunciar ao mundo diversos programas de vigilância massiva ,postos em prática pelo seu país, quer internamente, quer além fronteiras. Estávamos em 2013. Retratado num documentário – Citizenfour (2014) – num filme biográfico – Snowden (2016) –, e numa autobiografia em livro – Permanent Record (2019) –, a importância do feito de Snowden enquanto denunciante do maior escândalo de vigilância a cargo dos Estados Unidos não será desconhecido do grande público.Desde então, o denunciante está na mira da justiça norte-americana e vive exilado na Rússia, para onde prontamente fugiu. Entretanto a Justiça tem vindo a provar a ilegalidade de parte das actividades da NSA denunciadas pelo seu ex-funcionário, e Snowden tem feito também diversas aparições em conferências pelo mundo — participou, por exemplo, no Web Summit em Lisboa, em 2019. Os EUA têm tentado ficar com uma parte das receitas conseguidas, tanto com estas participações como também com a venda do livro supra-referido, mas pouco tem mudado substancialmente. Os Estados Unidos consideram-no um inimigo da pátria, nunca concederam o perdão, por muitos defendido e, por isso, é na Rússia, que evita um processo de extradição para território norte-americano — como o de Julian Assange —, onde seria acusado, julgado e muito provavelmente condenado por espionagem a uma pena significativa.
Foi na Rússia que Snowden passou a última década. Por lá casou com Lindsay Mills, como revelou em 2019 numa entrevista ao The Guardian, e teve os seus dois filhos, o primeiro em Dezembro de 2020 e o segundo, mais recentemente, em Setembro de 2022. E se em 2019 Snowden admitia a possibilidade de regressar aos EUA com a promessa de um julgamento justo, em 2022 é anunciada a sua dupla nacionalidade, americana e russa, depois de no dia 26 de Setembro um decreto presidencial de Putin anunciar a concessão da nacionalidade.
Dupla nacionalidade: russa e americana
Se a relação entre a Rússia e os Estados Unidos da América é tradicionalmente frágil, e um dos eixos de maior tensão na história recente do mundo, a guerra na Ucrânia veio agudizar ainda mais o conflito entre ambos, e é sob este complexo contexto de conflito que decorre todo o processo de Snowden.
Foi o próprio Snowden que, em 2020, pediu cidadania russa. “Depois de anos de separação dos nossos pais, a minha mulher e eu não queremos ficar separados do nosso filhos. É por isso que, nesta era de pandemia e de fronteiras fechadas, vamos pedir dupla cidadania americana-russa”, escreveu a 1 de Novembro de 2020 no Twitter, justificando o seu pedido com a possibilidade de durante a pandemia e o confinamento se ver afastado dos seus filhos.
Nesse ano, a Rússia já tinha dado a Snowden “uma autorização de residência por um período de tempo ilimitado” no país, sinal indispensável à obtenção da cidadania, segundo contou a uma agência noticiosa um dos seus advogados. E para além disso, Snowden podia aproveitar a reforma recente na lei russa, aprovada por Vladimir Putin, que passava a permitir que cidadãos estrangeiros pedissem a nacionalidade russa sem terem de renunciar da sua nacionalidade original.
“Depois de dois anos de espera e quase dez anos de exílio, um pouco de estabilidade fará diferença para minha família. Rezo por privacidade para eles – e para todos nós.” Foi assim que, também no Twitter, ao fim de dois anos, Snowden anunciou a concessão da nacionalidade.
E se para Edward Snowden o pedido foi de privacidade e para que o caso fosse mantido numa esfera pessoal, o posicionamento da sua peça neste complexo xadrez fez com que a jogada não ficasse por aí.
Na Rússia, o caso serviu para alimentar parte da narrativa interna. Na agência noticiosa Ria Novosti a nota de destaque na notícia da dupla nacionalidade de Snowden foi a de que o denunciante norte-americano encontrou a estabilidade na Rússia — já anteriormente peças análogas davam conta da felicidade de Snowden em terra russa, como na altura do seu casamento. E num programa da Rádio Sputnik, um comentador conservador relacionou a concessão da nacionalidade com o momento da Guerra. À margem de um comentário sobre os referendos nas repúblicas que se proclamam russas, o comentador abordou essa concessão de cidadania como um ponto simbólico mas importante na jogada política: “Vi isto como um símbolo muito simples: damos um passaporte àqueles que os EUA querem ter à sua disposição e assim mostramos que nunca os entregámos e nunca os entregaremos. E há aqui um paralelo óbvio com os referendos: aceitamos estas pessoas, estas regiões e repúblicas na cidadania russa, nunca as abandonaremos e lutaremos por elas.”
Do outro lado, os Estados Unidos da América foram parcos em declarações. Numa conferência de imprensa o porta-voz do Departamento de Estado norte-americano, Ned Price, disse não ter conhecimento de qualquer mudança de posição por parte de Snowden. Price referiu reconhecer que Snowden “denunciou” a sua cidadania, mas nada saber sobre a “renúncia” e, depois de reiterar que tudo permanece igual na relação entre os EUA e Snowden, sugeriu que “a única coisa que mudou é que como resultado da cidadania russa, aparentemente agora ele pode muito bem ser recrutado para lutar em uma guerra imprudente na Ucrânia”.
Com relação ou não, a editora-chefe do órgão de comunicação social estatal russo, RT, lançou um semelhante boato no seu canal de Telegram, perguntando se ele iria ser recrutado para a tropa. Uma questão que para já não se coloca uma vez que, segundo o advogado russo de Snowden, Anatoly Kucherena, citado pela agência de notícias estatal Ria Novosti e pelo The Guardian, o seu cliente não pode ser convocado (pelo menos para já) porque não serviu anteriormente as forças armadas russas, pelo que não está enquadrado na actual mobilização.
Uma vida discreta em Moscovo
A vida de Edward Snowden, agora com 39 anos, em Moscovo, é feita de forma discreta, como tem noticiado o The Guardian. O denunciante continua activo pelo Twitter para os seus 5,3 milhões de seguidores, onde publica sobretudo sobre o seu caso e temas relacionados com privacidade. No seu blogue/newsletter, “Continuing Ed”, publicou a 20 de Setembro um texto intitulado “America’s Open Wound” onde lembra que a agência de inteligência norte-americana, a CIA, continua a realizar execuções extrajudiciais ilegais. Mas não o fazia desde Dezembro de 2021.
Sobre a Rússia, Snowden é mais contido. Tendo já criticado ocasionalmente o Kremlin no passado, foi contido em comentários públicos relacionados com a invasão da Ucrânia pelas tropas de Putin. Questionado sobre a ausência de opiniões em relação ao conflito bélico, Snowden foi peremptório e humilde na sua análise. “Não estou em cima de um barril de ácido, pendurado ao tecto por uma corda que queima um pouco mais rápido cada vez que tweeto, seus carniçais preocupados. Acabei de perder qualquer confiança que tinha sobre que partilhar o que penso sobre esse tópico em particular era algo útil, porque o identifiquei de forma errada”, escreveu a 27 de Fevereiro deste ano, depois de no dia 11 desse mês ter escrito: “Não há nada mais grotesco do que os média pressionarem pela guerra.” Horas depois de olhar para as reacções que recebeu, especialmente, as citações ao tweet, adicionou: “Ser pró-guerra não é inteligente, legal ou sofisticado, e sua indignação performativa não muda isso.”
Snowden viu a sua primeira análise falhar perante a concretização da ofensiva russa, para lá da pressão dos media, e foi a partir de então que subtraiu desse debate. Ainda assim, apesar de contido no grande tema global do momento, a Guerra na Ucrânia, Snowden não deixa de estar atento ao que se passa no mundo e fazer ouvir a sua voz. Ainda neste domingo mostrou o seu apoio a Lula da Silva nas eleições do Brasil, que vão ter uma segunda volta a 30 de Outubro; na primeira volta, Lula conseguiu 48,4% dos votos, contra 43,2% de Bolsonaro.